Oito meses de pandemia se passaram e até o momento, as três modalidades do Programa Aquisição de Alimentos (PAA) que deveriam ser operacionalizadas de forma emergencial em Santa Catarina seguem inconclusas. Por diferentes motivos, nenhum dos programas teve recurso liberado, o que vem gerando preocupação e incerteza para agricultores familiares e agravando a fome de famílias em vulnerabilidade social. O Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Santa Catarina (Consea/SC), assim como o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Florianópolis (Comseas) pedem agilidade dos órgãos públicos responsáveis.

Ainda em maio, a Secretaria de Estado da Agricultura, da Pesca e do Desenvolvimento Rural (SAR) anunciou que destinaria R$ 2 milhões para o primeiro PAA anunciado no Estado no contexto da pandemia. Aprovado pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural (Cederural), o recurso deveria vir do Fundo de Desenvolvimento Rural (FDR) e seria repassado aos municípios para fortalecer a agricultura familiar, além de atender populações  em situação de insegurança alimentar e nutricional. No entanto, até o momento o recurso não foi liberado por falta de previsão orçamentária, segundo a Controladoria-Geral do Estado (CGE).

O Consea/SC, órgão responsável pelo controle social das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), informa que o recurso poderá não estar disponível até o final de 2020. Preocupados com esta situação, os conselheiros e conselheiras estão construindo uma minuta de decreto para exigir previsão legal para o repasse do recurso previsto aos municípios.

Alimentos se perdendo na lavoura

Outra modalidade do PAA anunciada aos catarinenses ainda em junho deste ano foi feita pelo Ministério da Cidadania. Nesta modalidade, o recurso é repassado à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e então às cooperativas da Agricultura Familiar que tiverem propostas selecionadas pela Conab e aceitas em conselhos de controle social – seja da assistência social, de SAN ou de desenvolvimento rural. Por fazer o controle social das propostas aprovadas, cabe aos Comseas monitorar a operação de entrega do PAA nos municípios, ou seja, mediar o diálogo entre as cooperativas, as unidades recebedoras e a Conab.

Em Florianópolis, o Comseas articulou a elaboração de propostas das cooperativas da agricultura familiar para atender as unidades recebedoras selecionadas em diálogo com o Mesa Brasil Sesc. Uma das propostas foi da Cooperativa Ecológica de Agricultores, Artesãos e Consumidores da Região Serrana (Ecoserra), de Lages. Apesar de ter sua proposta aprovada, estar com toda a documentação em conformidade e ter aberto uma conta bancária para receber o repasse – exigências desta modalidade – a Ecoserra não recebeu nem um centavo até o momento. 

Na proposta apresentada, a cooperativa previu principalmente o fornecimento de alimentos orgânicos in natura, produzidos por aproximadamente 60 famílias agricultoras, que seriam entregues em sete municípios – Florianópolis, Biguaçu, Palhoça, São José, Cerro Negro, Lages e Blumenau. Mas a entrega depende do planejamento de produção, que precisa ser antecipada dependendo do cultivo.

O administrador da Ecoserra, Marciano Coelho Correa conta que a demora na confirmação do repasse já tem afetado o planejamento de produção e consequente entrega dos alimentos no programa: “A gente está com os pés e as mãos amarrados. Enquanto não sair isso aí, não dá pra mandar os agricultores plantarem, porque, se plantar, chega 60 dias depois, vai saber se já tá aprovado”, explica o motivo da preocupação.

Além do risco de não ter certos alimentos para entregar quando o recurso for liberado, preocupa também os produtos que já estão se perdendo na lavoura. Como os agricultores contavam com o fornecimento ao PAA, que deveria ter iniciado em caráter emergencial, “já foi perdido repolho, alface, abóbora italiana, pepino, entre outras culturas. Então foi perdido um monte na lavoura e agora seguramos, porque tem que ter uma programação”, conta Marciano.

Enquanto o alimento se perde e os agricultores arcam com o prejuízo, creches, asilos, centros de ensino e associações deixam de receber alimentos saudáveis para complementar a alimentação de crianças, idosos e famílias em situação de vulnerabilidade social. A distribuição dos alimentos do PAA da Conab em Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu serão realizados pelo Mesa Brasil SESC, rede nacional de bancos de alimentos contra a fome e o desperdício.

O Mesa Brasil SESC recebe doações e organiza a logística e distribuição de alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade social e nutricional assistidas por entidades sociais cadastradas. A nutricionista na unidade São José, Jéssica Muller explica que a preocupação na demora do repasse vem, por um lado, pelas instituições recebedoras, “porque a gente está em um período onde a gente está tendo uma menor doação desde o início da pandemia, embora esteja ainda recebendo. […] Mas a gente sabe que a busca por alimentos aumentou nesse período”. Por outro lado está a preocupação com as cooperativas “que demandam de um planejamento para poder fazer a entrega desses alimentos”, explica Jéssica.

Tanto o Comseas, quanto o SESC Mesa Brasil e a cooperativa estão em diálogo constante com a Conab, mas até o momento não está claro porque o dinheiro ainda não foi liberado.

Quem tem fome tem pressa

Uma terceira modalidade ainda em andamento é o PAA Termo de Adesão Compra com Doação Simultânea do Ministério da Cidadania. Anunciado em julho, o recurso de R$ 4,56 milhões será repassado diretamente do Ministério da Cidadania a famílias agricultoras catarinenses com propostas aprovadas. As inscrições encerraram no dia 9 de novembro e agora, as aproximadamente 800 propostas inscritas estão sendo analisadas e cadastradas no Sistema do Programa de Aquisição de Alimentos (SISPAA). Segundo o Diretor-Presidente do Cepagro e conselheiro do Comseas, Eduardo Rocha, o problema neste caso é a morosidade, o excesso de burocracias e falta de estrutura e efetivo do governo estadual para operacionalização dessa modalidade do PAA. 

“Enquanto Comseas, a gente entende a necessidade de se cumprir todos os princípios da administração pública e os processos que devem ser respeitados com relação à tomada de preço, licitação, elaboração de contratos. Mas a gente vive uma pandemia, tem uma população que está com dificuldade de abastecimento alimentar e que está vivendo uma insegurança alimentar severa em vários municípios. É uma condição em que o Estado, seja na esfera municipal, estadual ou da União, tem que ser um pouco mais célere e olhar para o conjunto da sociedade que está dependendo desses programas de abastecimento e de Segurança Alimentar e Nutricional”, ressalta Eduardo Rocha.

O que se cobra nesse momento é agilidade e menos burocracias para amenizar um problema que é gravíssimo. E isso não é impossível: “a gente vê processos durante a pandemia de compra de equipamentos e processos de licitação muito mais rápidos e avançados em algumas frentes de trabalho e em outras, como é o caso do abastecimento alimentar, um pouco mais morosos. Isso deixa o Comseas, todo o controle social e as cooperativas muito preocupados”, conta Eduardo.

Estiagem agrava situação da Agricultura Familiar no Estado

Outro acontecimento que está afetando o abastecimento alimentar e gerando prejuízo a agricultores familiares, especialmente do oeste e meio oeste catarinense é a estiagem que se prolonga desde junho de 2019. Já são dezenas de municípios em estado de emergência nos três estados do sul, sem que se tenha certeza sobre o aumento no volume de chuvas para este ano.

Famílias agricultoras que já semearam os cultivos de verão terão que refazer o plantio devido a pouca umidade no solo. Segundo documento 

elaborado por movimentos e organizações da Agricultura Familiar para reivindicar ações dos governos estadual e federal, nos casos em que os cultivos já germinaram, “mesmo que chova nos próximos dias, as plantas não vão mais se recuperar a ponto de produzir grãos ou servir de alimento aos animais”, o que torna os danos irreversíveis. Falta água até para consumo humano.

Três resoluções foram publicadas no Diário Oficial da União visando combater os efeitos da estiagem na região sul, mas elas se restringem aos municípios que decretaram estado de emergência e/ou calamidade pública, deixando de fora municípios e famílias afetadas em diferentes medidas. Em documento endereçado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), organizações e movimentos camponeses, entre eles o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), MST e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF) reivindicam algumas medidas emergenciais. 

Entre as exigências estão: o fornecimento de água através de caminhões pipa nos municípios atingidos pela estiagem, a criação de programa de irrigação para a agricultura familiar associado a um programa de recuperação e preservação de nascentes e segurança hídrica, renegociação de contratos, estoques e dívidas, disponibilização de crédito e do Cartão Emergência Rural no valor de um salário mínimo por família rural, conforme Lei da Agricultura Familiar nº 11.326/2006. Além da inclusão das organizações da agricultura familiar e camponesa no GT de Crise sobre a estiagem em Santa Catarina, participação que o Consea/SC também vai requerer.