O Seminário de Construção de Mercados para Alimentos Bons, Limpos e Justos na Região Sul do Brasil aconteceu nos dias 17 e 18 de abril, em Florianópolis, reunindo 60 pessoas para discutir estratégias de mercado para a agricultura familiar e suas articulações com o Movimento Slow Food. 

 
“É como se a gente estivesse vendendo drogas”. A comparação feita pelo produtor de queijos coloniais Valdir Magri, de Seara (SC, foto acima) remete às restrições sanitárias à produção e comercialização de queijos coloniais e artesanais, que colocam a atividade à beira da ilegalidade. “Não podemos vender nossos queijos nas feiras, nada que esteja sem rótulo. Querem aplicar para nós as mesmas regras que valem para as grandes indústrias”, afirma Valdir.
A sanção da Lei n° 17.486, de 16/01/18, que regulamenta a produção e comercialização de queijos artesanais de leite cru, representa um avanço na flexibilização da fiscalização para esses produtos, sendo conseguida com intensa mobilização dos produtores, mas que ainda precisa ser dialogada com a Vigilância Sanitária. Outro passo importante foi a criação a Fortaleza do Queijo Colonial de Leite Cru de Seara, programa do Movimento Slow Food que buscar visibilizar, defender e fortalecer a cadeia produtiva de alimentos tradicionais que correm risco de extinção – seja por fatores ambientais ou por questões de legislação.
Assim como o queijo de leite cru, a farinha de mandioca artesanal e alimentos oriundos do extrativismo – como o pinhão e o butiá – enfrentam os desafios da informalidade e das restrições sanitárias para sua produção e comercialização. Encontrar alternativas e articular oportunidades de superar esses obstáculos foram alguns dos objetivos do Seminário de Construção de Mercados para Alimentos Bons, Limpos e Justos na Região Sul do Brasil, realizado nos dias 17 e 18 de abril em Florianópolis.
O evento faz parte do Projeto Alimentos Bons, Limpos e Justos, resultado da parceria entre Secretaria Especial da Agricultura Familiar, Movimento Slow Food e Universidade Federal de Santa Catarina, através do Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar (LACAF). O Cepagro participou através do Projeto Misereor em Rede, voltado para a articulação de consumidores. “Nosso objetivo é continuar fortalecendo essas articulações, a partir da troca de experiências, visando à participação ativa de consumidorxs na Rede Ecovida”, afirma Erika Sagae, da equipe do Cepagro/Misereor em Rede.
“A ideia é debater e trazer encaminhamentos sobre como esses grupos podem dialogar com a demanda, de forma direta e tendo acesso a mercados diversificados”, explica Valentina Bianco, representante do Slow Food Internacional. “As Fortalezas Slow Food fazem parte desse processo, desse caminho, pois fomentam a articulação em torno do alimento, promovendo sua qualificação e procurando sua regularização ou incidindo na mudança de leis inapropriadas para as produções artesanais, aumentando seu potencial de mercado”, completa.
Cerca de 60 pessoas participaram do Seminário, entre agricultores e agricultoras, consumidorxs, equipes técnicas de secretarias e empresas de extensão rural, estudantes, cozinheirxs e comerciantes dos três estados do Sul. Quatro Fortalezas Slow Food de Santa Catarina estiveram representadas: Queijo Colonial de Leite Cru de Seara, Engenhos de Farinha, Pinhão e Butiá, além da Comunidade do Alimento do Queijo Colonial do Diamante. Agricultores e agricultoras, extrativistas e produtores das fortalezas tiveram a oportunidade de compartilhar diretamente com o público as dificuldades e estratégias para seguir com suas atividades.
A informalidade dos mercados, restrições sanitárias e ambientais e a desvalorização do caráter artesanal e extrativista dos alimentos foram alguns dos principais desafios apontados.
A cadeia produtiva do pinhão envolve centenas de famílias extrativistas na região da Serra Catarinense. “Mas o principal mercado é a beira de estrada e quem colhe é o agregado”, explica Alexandre Prada, da equipe técnica do projeto. A cooperativa ECOSERRA é um dos pontos de apoio da cadeia, que também tem que lidar com questões como o manejo das araucárias, extremamente restrito pela legislação ambiental. A falta de pesquisa sobre logística e conservação do pinhão também dificulta sua comercialização mais formal, de acordo com Carolina Couto Waltrich, da equipe técnica do Centro Vianei de Educação Popular, que assessora famílias extrativistas.
Questões parecidas são enfrentadas pelas famílias da Fortaleza do Butiá, localizada entre os municípios de Garopaba, Imbituba, Laguna, Jaguaruna e Pescaria Brava, no litoral sul de Santa Catarina. A falta de valorização da polpa nos mercados também é uma dificuldade: “Não tem como comparar o preço de uma polpa dessas com uma coca-cola ou suco industrializado. Isso é um alimento que tem história e preservação ambiental embutidos”, explica Antônio Augusto dos Santos, da Fortaleza do Butiá.
Assim como as queijarias coloniais, os engenhos de farinha artesanais sofrem com as exigências sanitárias – artefatos em inox, azulejos nas paredes, banheiros e vestiários – para continuarem suas atividades sem perder a tradicionalidade. A agricultora Catarina Gelsleuchter tem um engenho em Angelina movido a roda d’água, onde continua produzindo farinha e outros derivados da mandioca. A comercialização desses alimentos, entretanto, continua sendo informal, já que o engenho não se adapta ao modelo imposto pela legislação sanitária. Além disso, é difícil competir com o preço da farinha industrializada. Para Catarina, a criação de um selo especial para produtos artesanais e tradicionais pode ser uma alternativa para certificá-los e garantir seu preço justo.
Alternativas de mercado pautadas pela lógica do consumo consciente representam um canal importante para a comercialização de alimentos bons, limpos e justos. Algumas dessas experiências participaram do Seminário, como a Coopet, cooperativa de consumidores que existe há 20 anos em Torres (RS). A cooperativa é formada por 100 famílias de sócios-consumidores, que pagam R$ 35 por mês e compram alimentos agroecológicos a preço de custo. A taxa de R$ 35 serve para cobrir os custos de manutenção da sede da cooperativa.
A articulação e organização entre consumidorxs para comercialização de alimentos agroecológicos diminui a presença de atravessadores na cadeia comercial, garantindo melhor preço para agricultorxs e mais envolvimento por quem consome, além de mudanças nos hábitos alimentares. Uma dessas iniciativas é a da Comunidade que Sustenta a Agricultura, surgida na Alemanha nos anos 1920 e chegada a Florianópolis em 2016. A ideia é que haja uma planilha aberta de custos de produção, que são compartilhados entre consumidores e produtores. Na iniciativa apresentada durante o Seminário, um casal de agricultores de Águas Mornas produz e entrega semanalmente 22 cestas agroecológicas (a capacidade de produção deles é para até 40 cestas). O planejamento de produção é feito de acordo com a sazonalidade dos alimentos, a gestão administrativa e financeira do empreendimento é toda compartilhada e cada membro paga uma cota mensal para compartilhar os custos de produção, que vão de R$ 130 a R$ 200 por mês (dependendo dos alimentos comprados).
Também iniciada em 2016, a Célula de Consumo Responsável da UFSC é um arranjo de venda direta de alimentos orgânicos que resulta de uma articulação do Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar. “Nasce a partir da necessidade de agricultorxs de acessarem mercados mais justos e de consumidorxs terem acesso a melhores alimentos”, explica Isadora Escosteguy, mestranda em Agroecossistemas e membra da Célula. Dois grupos de agricultores da Rede Ecovida de Agroecologia fornecem alimentos para a célula, que já distribui semanalmente 100 cestas. As cestas variam entre R$ 29 (com 4,5kg de alimentos) e R$ 53 (com 13 itens, 9 kg de alimentos).
De acordo com Erika Sagae, da equipe Cepagro/Misereor em Rede, essas articulações de consumidores organizados é essencial para desatar os nós de logística enfrentados pela agricultura familiar agroecológica. “No Seminário ficou claro novamente que é importante ter aproximação entre consumidor e produtor, além de conscientização de consumidores a partir de espaços como feiras e oficinas”, afirma. Avançar na comunicação visual dos alimentos da Fortaleza foi outra demanda posta no Seminário. Como encaminhamento, Cepagro, LACAF e Slow Food vão analisar as demandas elencadas durante o evento para seguir criando estratégias em rede pra aproximação de consumidorxs e produtorxs.