por Fernando Angeoletto
Em um senso mais comum, a gestão de resíduos na Itália remete à cena das ruas de Nápoles tomadas pelo lixo em um sistema submisso à Máfia, ou ainda à polêmica solução da “exportação” do problema em conteiners para a Ásia e África.
Embora pesem estas manchas, o segmento de coleta e tratamento da fração orgânica é bastante avançado. A organização social que permite reciclar orgânicos é fundada sobretudo no Consorzio Italiano Compostatori (CIC), composto por empresas e entes públicos que realizam, em todo território nacional, pesquisas, fomento a intercâmbios, formações técnicas, formulação de políticas públicas e certificação de processos de bioestabilização da matéria orgânica através da  compostagem. Desta cultura  provém sofisticados programas de compostagem em larga escala, a exemplo da cidade de Milão, com 1,3 milhões de habitantes e a recém incorporada coleta específica para resíduos orgânicos, centrada em um sistema “porta-a-porta” que alcança 100% da zona urbana.
DSC_2672A expressividade que o método da compostagem atingiu no país é devida a um conjunto de fatores, que vão desde eficientes processos de comunicação com viés multicultural, apresentado em várias línguas em visando a adesão do público nativo e imigrante na separação do lixo, à disponibilidade de materiais e equipamentos adequados à coleta dos resíduos, eliminando a possibilidade de mal cheiro ou qualquer característica indesejada na cadeia de reciclagem dos orgânicos. É portanto uma gestão que toma decisões técnicas de grande eficiência, diminuindo os custos em toda a cadeia.

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O sistema porta-a-porta de Cuneo, com 55 mil habitantes


Para beber desta fonte realizamos uma visita técnica a 2 programas distintos de compostagem em nível municipal. Fomos guiados por Marco Ricci, representante da CIC, Luca Torresan, diretor comercial da Sartori Ambiente, que desenvolve produtos focados na separação de resíduos orgânicos na fonte, e Roberto Stracquadanio, empresário que projeta e implementa plantas de compostagem na Itália e no exterior.
DSC_2670A primeira parada foi em Cuneo, que tem 55 mil habitantes e forma, com outros 54 municípios, o Consorzio Ecologico Cuneese, responsável por um programa de coleta seletiva extensivo a 110 mil residentes. Desde maio deste ano, é feita a coleta porta-a-porta dos resíduos orgânicos 3 vezes por semana em toda a cidade de Cuneo. Cada residência recebe seu próprio contentor, identificado por um código de barras, que permite o monitoramento do uso. O descarte é feito em sacolas biodegradáveis, de papel ou plástico, de modo a demandar pouca manutenção nos contentores.
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Os resíduos tem compartimentos específicos nos caminhões


Veículos especiais são disponibilizados para a coleta, feita por apenas 1 operador que, ao verificar qualquer irregularidade no descarte, aplica um adesivo de advertência no contentor, com finalidade educativa. “O sistema é aprovado por mais de 90% da população”, explica Marco Ricci. Para o esclarecimentos sobre o método correto de descarte, além de folhetos e informativos os usuários tem a disposição a Linha Verde, uma central telefônica permanente. Todo o resíduo orgânico coletado é encaminhado à compostagem.
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A separação dos sacos plásticos exige grandiosa engenharia em Pinerolo


Já o município de Pinerolo realiza um sistema diferente na gestão dos resíduos, realizada pelo Consorzio ACEA. Ali, a coleta não é feita porta-a-porta; os moradores  depositam os resíduos em contentores nas ruas, coletados periodicamente. Ainda que estimule a separação dos orgânicos na fonte, o sistema peca por não abolir o uso de sacolas plásticas. Após passarem por sistemas mecânicos em escala industrial, que os separam dos plásticos, os resíduos são conduzidos a enormes biodigestores. Misturados às águas efluentes das lagoas de tratamento de esgotos, convertem-se em gás para aquecimento e geração de energia elétrica.
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O composto Florawiva antes de ser peneirado e embalado


A compostagem é o elo final do sistema. O lodo final resultante da biodigestão é levado a um prédio com aeração forçada, onde permanece por 28 dias até a primeira fase de estabilização, quando é transferido a um outro local para maturação. Ao final de 60 dias, o composto orgânico está pronto para uso. Depois de embalado em identificado com a marca FloraWiva, o produto é vendido localmente com garantia e aprovação como insumo para agricultura biológica.
Nossa avaliação sobre a visita
O trabalho do Cepagro em compostagem surgiu a partir da promoção da Agroecologia também em áreas urbanas, além das intervenções em áreas rurais historicamente realizadas pela entidade. O trabalho de base para a produção de adubo orgânico, insumo fundamental para a incubação, nascimento e crescimento de processos de Agricultura Urbana, é a linha-mestra que define os nossos estudos e práticas na disseminação da compostagem como método de transformação da matéria orgânica. Assim sendo, a gestão de resíduos proposta não encerra-se apenas em um olhar sanitarista, mas acima de tudo sob um olhar agronômico e agroecológico.
São estes conceitos que guiaram o surgimento da Revolução dos Baldinhos, que desenvolveu-se a ponto de tornar-se uma referência na Gestão Comunitária de Resíduos Orgânicos aliando compostagem e agricultura urbana. Desta raiz descendem outras importantes conquistas, como a assessoria à implementação de pátios de compostagem no SESC/SC o certificado de tecnologia social pela Fundação Banco do Brasil, que abre potenciais para replicação do método para milhares de habitações populares em todo o Brasil. Espera-se, com o incremento da oferta de adubo orgânico gerada pela compostagem em escala urbana, que haja na mesma proporção o crescimento da produção de alimentos agroecológicos pelos coletivos urbanos, periurbanos e rurais.
Com a visita que realizamos na Itália, nossa intenção é o fortalecimento brasileiro dos conceitos relativos à compostagem numa ampla escala, atendendo a Política Nacional de Resíduos Sólidos e criando, ao mesmo tempo, um vínculo com o Plano Nacional de Agroecologia a partir da produção do insumo. Observa-se neste elo, sobretudo, a possibilidade de fechar um ciclo virtuoso na circulação da matéria orgânica, deixando de ser um “problema” na cidade para ser devolvida ao solo em forma de fertilidade.
“Esta missão técnica na Itália nos mostrou um setor bem organizado e articulado, é o que precisamos no Brasil, pois o assédio de tecnologias de anaerobiose e de incineração está muito forte no setor” avalia o agrônomo Marcos José de Abreu. “Seguimos firmes no propósito de sensibilizar os gestores públicos quanto ao manejo do ‘lixo’ urbano, iniciando fundamentalmente pela separação na fonte, disseminando a ideia de que cada família ou empreendimento deve ter contentores adequados para as sobras orgânicas assim que elas forem geradas”, complementa. Com esta atitude simples, vinculada a uma coleta especial dos resíduos, soluções de baixo custo e alta eficiência podem dar ao lixo um destino incomparavelmente mais digno do que os aterros sanitários.