Carta aberta em defesa da Agroecologia e da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional dos povos

Porque Agroecologia?

Nas últimas décadas, o clima da Terra vem passando por mudanças bruscas, aceleradas e imprevisíveis, decorrentes do aquecimento global. Sua principal responsável é a atividade capitalista moderna, especialmente devido à queima de combustíveis fósseis, do desmatamento e da agropecuária. Este contexto de extremos climáticos vem desencadeando múltiplas crises – econômica, migratória, sanitária, política e ambiental – que, associadas, ameaçam a vida no planeta Terra.

Essa ameaça é, e será, sentida de forma desigual em diferentes países e a região da América Latina e Caribe está entre as mais vulneráveis, segundo relatório do Banco Mundial. Intitulado Roteiro para Ações Climáticas na América Latina e no Caribe: 2021-2025, o relatório aponta que o setor agrícola, junto com as mudanças no uso da terra e o desmatamento, respondem por 47% das emissões de gases de efeito estufa na região.

A agricultura e pecuária industrial, além de ser uma das principais participantes na perda da biodiversidade e na degradação dos ecossistemas contribuindo com as mudanças climáticas, até hoje – mesmo estando apoiada em uma estrutura financeira de subsídios e incentivos estatais – não foi capaz de resolver o problema da fome, pelo contrário: o número de pessoas em situação de fome aumentou em 13,2 milhões e chegou a 56,5 milhões na América Latina e Caribe entre 2019 e 2021, de acordo com relatório da CEPAL, FAO e Programa Mundial de Alimentos. Isso demonstra concretamente que a questão da fome não está associada somente a modelos tecnológicos de produção, mas intimamente ligada a uma política que contemple outro modelo de sistema agroalimentar, o que pressupõe novos formatos de gestão econômica que estejam baseados nos princípios da ecologia e da igualdade social.

Não podemos deixar de mencionar também o impacto da agricultura industrial  na saúde humana e no meio ambiente. Insistentemente apresentados como indispensáveis, os agrotóxicos, que são o combustível deste modelo de agricultura predatória, intoxicam a água, o solo e a saúde de populações do campo, da cidade e das florestas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os agrotóxicos causam 70 mil intoxicações agudas e crônicas que evoluem para óbito todos os anos em países do Terceiro Mundo. Além de outros mais de sete milhões de casos de doenças agudas e crônicas não fatais também registrados. Por fim, sabe-se que o setor do agronegócio não gera empregos de forma relevante, pelo contrário, contribui para a destruição de modos de vida e para o êxodo rural.

Opondo-se ao paradigma do sistema agroalimentar industrial, a Agroecologia se apresenta como alternativa para a regeneração dos ecossistemas locais, combate às mudanças climáticas e para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. É uma ciência, prática e movimento que propõe o uso do conhecimento ecológico para atividades agrícolas, pecuárias, florestais e de produção de alimentos de maior qualidade em harmonia com os ciclos naturais, contribuindo assim para a preservação das águas e a valorização da agrobiodiversidade. Dessa forma, a Agroecologia faz frente à emergência climática, promovendo a redução nas emissões de carbono na atmosfera e resiliência aos efeitos colaterais da mudança do clima tendo como perspectiva a justiça climática.

Sendo uma ciência que é também movimento e que ultrapassa a prática agrícola, a Agroecologia contempla de forma abrangente a saúde do ecossistema, a justiça social, o comércio justo, a promoção de redes e de sistemas alimentares saudáveis no campo e na cidade. Por tudo isso, é um processo colaborativo que se faz em rede e que requer o diálogo entre conhecimentos tradicionais e científicos visando colaborar com o bem-viver das comunidades humanas e não-humanas.

Rede latino-americana de Agroecologia e Soberania Alimentar

Há sete anos, um conjunto de organizações do Brasil, Paraguai, Equador, México e El Salvador, que historicamente promovem a agricultura agroecológica na América Latina vem tecendo uma rede de colaboração em torno do tema. Neste período, intercambiaram experiências, conhecimentos e metodologias que possibilitaram identificar e qualificar suas atuações e incidências políticas locais. A partir de 2020, se propuseram a um novo desafio: identificar indicadores agroecológicos, nas dimensões econômica, ambiental e social, para de forma coletiva e coordenada com universidades e pesquisadores/as evidenciar sistemas agroalimentares sustentáveis e compreender quais obstáculos ainda dificultam os processos de transição agroecológica em seus países.

Indicadores de sustentabilidade são complexos e diversos, mas essenciais para estabelecer, monitorar e avaliar as relações de interesse dentro de sistemas agrícolas sustentáveis. São também uma forma de subsidiar projetos e políticas públicas com base em informações claras, consistentes e evidenciadas. Além de seu potencial em apoiar as famílias agricultoras na tomada de decisões referentes à gestão de suas propriedades.

Inclusive, as famílias agricultoras são um elo essencial neste processo. Muitas organizações e movimentos sociais que trabalham com processos de transição agroecológica em todo mundo estão buscando novos métodos para compartilhar informações de agricultor para agricultor, e de agricultores para consumidores e formuladores de políticas sobre as diversas maneiras pelas quais a Agroecologia e a soberania alimentar podem melhorar o bem estar dos indivíduos, comunidade e natureza.

Com isso, esta coalizão de organizações latino-americanas, que juntas beneficiam mais de 6.500 famílias agricultoras a partir de seus projetos, vislumbra um horizonte onde a Agroecologia seja política e socialmente assumida como uma abordagem para o enfrentamento às crises emergentes.

Agroecologia como política de Estado

Há uma ausência de políticas públicas para fortalecimento e ampliação da agricultura familiar agroecológica rural e urbana, que sejam voltadas para investimentos em infra-estrutura, assistência técnica, acesso a crédito e, sobretudo, o apoio a construção de mercados que estejam em sintonia com a produção agroecológica. A partir do acúmulo de experiência das organizações e de levantamentos já realizados junto a agricultores e agricultoras familiares, identificamos algumas necessidades comuns para a efetiva transição agroecológica nos territórios.

Primeiramente é necessário a construção de políticas públicas que incentivem a produção agroecológica buscando a restauração dos agroecossistemas. Em segundo lugar, está a necessidade de programas de incentivo e empoderamento dos jovens agricultores que, em geral, têm pouca autonomia financeira e baixa participação em espaços sócio-organizativos. É importante lembrar que o êxodo rural continua sendo uma realidade que ameaça o futuro da agricultura familiar e, consequentemente, o abastecimento alimentar de nossas cidades. Segundo boletim da FAO, a agricultura familiar é responsável por 60% da produção de alimentos na América Latina e no Caribe.

Por fim, há de se pensar nas dinâmicas de comercialização e na democratização do acesso aos alimentos orgânicos e agroecológicos. Identificamos através de indicadores de relação produção-consumo que os mercados de proximidade –  feiras, cestas e mercados institucionais – são os principais meios de escoamento de produção das famílias agricultoras agroecológicas participantes. O incentivo a estes canais e a formação de mercados consumidores é essencial para a continuidade e ampliação da agricultura agroecológica.

Neste sentido, vimos por meio desta carta coletiva evidenciar a importância da construção de políticas públicas, de programas e do financiamento de projetos direcionados à agricultura de base agroecológica em sua dimensão social, econômica e ambiental que considerem:

  • A necessidade de fomento e apoio à produção agroecológica e a assistência técnica por meio de financiamento público;
  • Apoio à permanência dos/as jovens nas propriedades agrícolas, com a melhoria da educação ofertada no espaço rural;
  • A equidade de gênero como princípio a ser seguido, o que inclui a justa divisão do trabalho doméstico, remuneração igual para trabalho igual e respeito sem assédio laboral ou de qualquer outra natureza;
  • Acesso a redes de internet no espaço rural;
  • Fomento e apoio às pesquisas e incentivo a criação de maquinários de pequeno porte para apoiar a agricultura familiar agroecológica;
  • Fomento e apoio às feiras e as diferentes formas de comercialização direta e coletiva;
  • Campanhas de conscientização do consumo de alimentos saudáveis;
  • Promoção de intercâmbios solidários entre produtores e consumidores;
  • Fixação de preços justos e dignos para os produtos da agricultura familiar agroecológica;
  • Promoção de práticas ancestrais como escambo ou troca de produtos, serviços e sementes nativas e crioulas entre o campo e a cidade;
  • Promoção da agroecologia nas escolas urbanas e rurais, principalmente junto a crianças para sensibilizar a população desde a primeira infância;
  • Promover encontros regionais, nacionais e internacionais de Agroecologia;
  • Garantir o efetivo Direito à Alimentação Adequada e Saudável;
  • Garantir o acesso à terra e à água;
  • Efetivar a demarcação de territórios indígenas.
 

As organizações que assinam esta carta contam com recursos financeiros do setor privado, de fundações e cooperações internacionais, além de apoios pontuais de entes públicos favoráveis ao tema e da parceria com universidades. Entendemos que, quando os Estados assumirem a Agroecologia como política pública, abarcando Agricultura, Alimentação, Saúde, Educação e Trabalho, será possível ampliar a escala do trabalho dessas e de outras tantas organizações, coletivos e movimentos que, mesmo com recursos escassos, continuam promovendo uma agricultura sustentável e enraizada na Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Assinam esta carta as seguintes organizações do campo da Agroecologia:

Asociación de Productores Orgánicos – APRO (Paraguai)

Asociación Vivamos Mejor (Guatemala)

Centro Campesino para el Desarrollo Sustentable, A.C. (México)

Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo – CEPAGRO (Brasil)

Centro de Tecnologias Alternativas Populares – CETAP (Brasil)

Corporación Buen Ambiente – Corambiente (Colômbia)

Fundesyram (El Salvador)

Movimento Mecenas da Vida – MMV (Brasil)

Movimiento de Economía Social y Solidaria del Ecuador – meSSe (Equador)

Tijtoca Nemiliztli A.C. (México)