por Ana Carolina Dionísio

Foi com auditório lotado e mesa farta que pesquisadores, representantes de entidades governamentais, da Rede Ecovida e do Movimento Slow Food, líderes extrativistas, agricultores, estudantes, professores e eco-chefs discutiram as diversas relações entre saberes tradicionais, alimentação e cadeias produtivas durante o evento Patrimônio Agroalimentar em Debate, realizado na quarta-feira passada (27/03) no campus Continente do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianópolis. O encontro foi promovido pelo Cepagro em parceria com o Convivium Mata Atlântica, grupo de gastrônomos-expedicionários que viajam pelo Brasil buscando valorizar matérias-primas regionais, e com o Curso de Gastronomia do IFSC – que também atua neste sentido, através da formação de profissionais.

Auditório cheio para debater potenciais e restrições de alimentos tradicionais

Auditório cheio para debater potenciais e restrições de alimentos tradicionais

Lia Poggio, coordenadora do Slow Food na América Latina, abriu o debate afirmando a importância de combinar desenvolvimento territorial com preservação da identidade cultural, lembrando que o turismo consciente pode contribuir para isso. Na sequência, Andrea Fantini, pesquisador do Laboratório de Economia e Marketing Agroalimentar da Universidade de Teramo (Itália), abordou a comercialização de produtos típicos no contexto da economia solidária. Ele destacou a noção de preço justo, “aquele que maximiza o bem estar conjunto dos produtores e consumidores”, afirmando que, para chegar a este valor, é necessário “promover e garantir a transparência do processo de formação dos preços”, o que começa com o conhecimento efetivo dos custos de produção.

Produtos típicos a preços justos e economia solidária foram tópicos abordados pelo prof. Andrea Fantini, da Universidade de Teramo (Itália)

Produtos típicos e economia solidária foram abordados pelo prof. Andrea Fantini, da Universidade de Teramo (Itália)

O coordenador geral do Cepagro Charles Lamb encerrou a primeira mesa apresentando as várias frentes de atuação da ONG e da Rede Ecovida em prol da agricultura familiar e da democratização do acesso a alimentos saudáveis em Santa Catarina. As iniciativas de agricultura urbana da organização, que envolvem a gestão comunitária de resíduos orgânicos e de hortas escolares, foi um dos eixos de trabalho abordados, assim como a assessoria para a certificação participativa de produtos ecológicos – sistema de garantia em que conformidade orgânica é avaliada pelos próprios agricultores articulados em rede, não por uma agência.

Outro projeto abordado é o da diversificação produtiva em áreas de cultivo de tabaco. No Brasil, um dos maiores produtores mundiais de fumo, cerca de 200 mil famílias (55 mil só em Santa Catarina), ainda sobrevivem da fumicultura. Segundo Lamb, para mudar esta realidade é fundamental questionar não só as fumageiras, mas “o próprio modelo de produção, que privilegia o tabaco em detrimento do cultivo de alimentos”. Buscando isso, o Cepagro presta assessoria técnica para dezenas de famílias fumicultoras em processo de transição para o cultivo de alimentos (especialmente orgânicos). Este apoio não se restringe às etapas de plantio, mas também do escoamento da produção, através do circuito de comercialização da Rede Ecovida e do recém-inaugurado Box de Produtos Orgânicos no Ceasa/SC. Lamb também ressaltou a forte incidência política da Rede na discussão de marcos legislatórios para alimentos orgânicos e agricultura familiar.

A busca de alternativas para o funcionamento de engenhos artesanais de farinha de mandioca que combinem a preservação da sua atividade como patrimônio cultural com a legalização e valorização dos seus produtos foi o tema da segunda mesa de debates do evento. A mediação foi do agrônomo Marcos José de Abreu, idealizador do projeto “Ponto de Cultura Engenhos de Farinha”, que desde 2011 vem realizando ações no sentido de reconhecer e dinamizar atividades nestes locais em 5 municípios do Litoral Catarinense.

A importância histórica e cultural dos engenhos artesanais de farinha e os entraves para a comercialização dos seus produtos foram discutidos durante o evento

A importância histórica e cultural dos engenhos artesanais de farinha e os entraves para a comercialização dos seus produtos foram discutidos durante o evento

O painel começou com uma recuperação histórica do papel da farinha de mandioca na economia catarinense, feita por Claudio Andrade, proprietário do Casarão e Engenho dos Andrade, no bairro de Santo Antônio de Lisboa. Do surgimento dos engenhos como uma adaptação dos moinhos de vento europeus, ele chegou ao panorama atual em que a farinha de mandioca artesanal sofre um desprestígio frente a outros alimentos industrializados, somado ao que ele chamou de “exigências sanitárias absurdas”, como a instalação de azulejos em pequenas unidades produtivas familiares.

É por causa da inviabilidade destas medidas que o agrônomo da Epagri Enilto Neubert, que falou a seguir, diferenciou os engenhos voltados para a preservação da memória dos que têm produção comercial. Para ele, a realização de trabalhos de pesquisa e extensão universitária nestes locais é fundamental para a manutenção de ambos, assim como a valorização gastronômica da farinha de mandioca no âmbito das unidades produtivas comerciais. Já o representante da Cidasc Wladimir Mendes apresentou um olhar mais pessimista, destacando o declínio do consumo de farinha de mandioca no país e a dificuldade de encontrar opções para que os engenhos continuem ativos sem ferir a legislação e os parâmetros sanitários brasileiros.

Se o reconhecimento culinário da farinha é um caminho para os engenhos com atividade comercial, a salvaguarda deste produto como patrimônio cultural pode ser uma opção para as unidades mais tradicionais, num processo que foi esclarecido pela historiadora Regina Helena Santiago, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ela explicou que o pedido de registro deve ser feito por um coletivo representativo da comunidade, pensando na questão “O que essa farinha representa para as populações que a consomem?”, assim como aconteceu com o queijo mineiro, os doces de Pelotas e o acarajé baiano, itens que já estão sendo registrados junto ao Iphan.

Apesar dos entraves burocráticos e dificuldades econômicas, os engenhos artesanais continuam em atividade. Dois dos seus produtos, a bijajica (bolo de farinha de mandioca com amendoim) e o beijú, foram degustados durante o evento, junto com outros sabores tradicionais do litoral catarinense, como o berbigão, servido em um patê, doces e geleias orgânicos, pães integrais e queijo cremoso. Tudo acompanhado de águas aromatizadas e sucos naturais preparados na cozinha industrial do IFSC pelos chefs Fabiano Gregório, Bernardo Simões e Philipe Bellettini, além de frutas do Box de Produtos Orgânicos do Ceasa.

Beijú, bijajica, patê de berbigão, doces caseiros e frutas orgânicas deixaram o debate mais colorido e saboroso

Beijú, bijajica, patê de berbigão, doces caseiros e frutas orgânicas deixaram o debate mais colorido e saboroso

Assim como a produção tradicional de farinha, a pesca artesanal também enfrenta impasses. Alguns deles foram expostos durante o segundo painel do evento, mediado por Gregório, que também estava representando o Convivium Mata Atlântica/SC e o Movimento Slow Fish, que pretende recuperar os saberes tradicionais de comunidades de pescadores. Além da doutoranda em Sociologia Política Mariana Policarpo, participaram do debate duas importantes lideranças de Reservas Extrativistas de Pesca Artesanal (Resex) de Santa Catarina: Maria Aparecida Ferreira, de Ibiraquera, e Valdeuclides do Nascimento, da Costeira do Pirajubaé, em Florianópolis.

Numa fala emocionada, Maria Aparecida contou os vários obstáculos enfrentados pelas comunidades de pescadores do litoral sul catarinense para prosseguir com a pesca de subsistência, da falta de apoio (e às vezes até oposição) do município à ação predatória da grande indústria. Na mesma linha, Valdeuclides do Nascimento apresentou o panorama da Resex da Costeira, que segundo ele é a primeira do Brasil e a maior em uma área urbana. Por estar dentro da cidade, sofre muito mais a pressão da crescente especulação imobiliária na Ilha de Santa Catarina. Sr. Vado, como é conhecido, questionou a concessão de licenças ambientais para empreendimentos à beira-mar enquanto ranchos de pesca artesanal são considerados ilegais. “A Resex é vista por alguns como um obstáculo ao desenvolvimento do sul da Ilha, por exemplo, por atrapalhar a duplicação da estrada para o aeroporto”, completou.

Maria Aparecida Ferreira, da Resex de Imbituba e Garopaba: “Ninguém quer conhecer essa maravilha que é a pesca artesanal só por fotos. Todos queremos vê-la ao vivo e a cores sempre”

Maria Aparecida Ferreira, da Resex de Imbituba e Garopaba: “Ninguém quer conhecer essa maravilha que é a pesca artesanal só por fotos”

Os representantes da pesca artesanal também falaram de conquistas, como a própria Resex de Imbituba e Ibiraquera, resultado de 5 anos de discussões na comunidade e de atuação política em diversas instâncias. “Muitas vezes dá vontade de largar o pano, mas quando vemos tanta gente nos apoiando, dá mais ânimo de continuar”, disse Maria Aparecida. Uma das plataformas de apoio à atividade está na pesquisa acadêmica, como a investigação de Mariana Policarpo, focada nas estratégias integradas de geração de trabalho e renda a partir da valorização da identidade cultural das comunidades pesqueiras tradicionais. De acordo com ela, estes territórios estão marcados por atividades diversificadas, como pesca, agricultura e turismo. Conciliá-las com a preservação de recursos naturais é um desafio necessário, já que o meio-ambiente é também o principal atrativo turístico local. Mariana constatou isso após analisar cerca de 3 mil exemplares de materiais impressos de promoção turística da região de Imbituba e Garopaba; na maioria deles, as praias e lagoas tinham destaque. Mas, como lembrou Maria Aparecida, estas belezas não podem ficar só no papel: “Ninguém quer conhecer essa maravilha que é a pesca artesanal só por fotos. Todos queremos vê-la ao vivo e a cores sempre”.

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