Esta foi a tônica da intensa troca de saberes, experiências e até mesmo receitas que marcou a segunda edição do evento, realizado na última quarta (15/05) no Museu Comunitário Engenho do Sertão, em Bombinhas, integrando a programação da Semana Nacional de Museus. Promovido pelo Cepagro através do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha, em parceria com a ONG Instituto Boi Mamão, o evento reuniu representantes do poder público e da Epagri, acadêmicos, estudantes de Ensino Médio e mestres de engenhos locais. Nesta etapa, as atividades estiveram focadas na farinha e outros derivados da mandioca produzidos nestes espaços que continuam vivos: os engenhos artesanais.

por Ana Carolina Dionísio – Cepagro

O evento reuniu representantes do poder público, da Epagri, estudantes, acadêmicos e mestres de engenhos da região

O evento reuniu representantes do poder público, da Epagri, estudantes, acadêmicos e mestres de engenhos da região

Antes de começarem a discutir questões relativas aos engenhos, como a sua importância tanto para a preservação da memória e dos saberes tradicionais ligados à gastronomia quanto como atividade econômica, os participantes visitaram duas unidades produtivas, que neste mês já estavam em plena ação. Uma das anfitriãs foi D. Rosa Melo, proprietária de um engenho artesanal em que algumas técnicas tradicionais de preparação e o processamento da matéria prima são mantidas, como a prensa manual de fuso para desidratar a massa da mandioca. Além da produção para a subsistência, D. Rosa também vende farinha para quatro localidades da região. Nas fases de raspagem e lavagem das raízes, feitas manualmente, ela conta com a ajuda de várias mulheres dos bairros vizinhos, que vêm trabalhar ali em troca de massa para beiju, outro processado do engenho. De acordo com Gabriella Pieroni, coordenadora do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha, este tipo de vivência comunitária aliada ao interesse pelo produto demonstra a relevância que os engenhos continuam tendo localmente: “Os engenhos não morreram porque os produtos e processados não saíram da mesa das pessoas”, afirma.

Nas rodas de bate-papo das visitas aos engenhos, muito diálogo de saberes e experiências

Nas rodas de bate-papo das visitas aos engenhos, muito diálogo de saberes e experiências

Entre a visita aos engenhos e as apresentações do painel Os Engenhos de Farinha não morreram, a segunda atividade do dia, um delicioso almoço foi servido no Engenho do Sertão, preparado no fogo a lenha por Salete Pinheiro, Rosa Melo, Darci, Rosete e Rosane Fritsch com matérias primas locais: mariscos, cação e a farinha para o pirão. A prefeita de Bombinhas, Ana Paula da Silva, estava presente e demonstrou a abertura da gestão atual para fomentar ações de apoio à manutenção dos engenhos, seja do ponto de vista econômico ou enquanto espaços de preservação da cultura local.

Pausa para o almoço preparada no fogão a lenha com matérias primas locais

Pausa para o almoço preparado no fogão a lenha com matérias primas locais

Após o almoço, com a chegada de mestres produtores de farinha, a presidente da Fundação Municipal de Cultura Nivea Maria Bücker abriu o debate ressaltando a importância de conhecer a história da nossa tradição gastronômica para saber mais da cultura local. “É claro que o produto final – seja uma tainha assada ou um beiju – é muito bom, mas quando a gente agrega esse valor da história ou da herança destes alimentos, fica melhor ainda”, disse. Exemplos da valorização de matérias primas tradicionais, como a mandioca e o berbigão, aparecem no curta-metragem “Litoral Catarinense”, apresentado no evento. O vídeo, focado nos engenhos de farinha e reservas de pesca artesanais, representou Santa Catarina na Expo Movil do Terra Madre, encontro internacional do movimento Slow Food realizado na Itália em outubro do ano passado.

Rosane Lutchemberg, presidente do Instituto Boi Mamão e coordenadora do Museu Comunitário Engenho do Sertão, deu continuidade ao painel após a exibição do curta, questionando uma matéria do Jornal da Assembleia Legislativa de 2004 intitulada Os engenhos de farinha estão morrendo. “Pra nós, eles estão muito vivos. Quando fizemos um mapeamento dos engenhos na região em 1999, havia 9 em funcionamento. Dez anos depois, em um levantamento da Fundação Municipal de Cultura, foram registrados 13”, afirma a gestora de projetos. O próprio Engenho do Sertão, adquirido por Rosane em 1997 e cadastrado como Museu Comunitário em 2007, é um exemplo de como estes espaços podem continuar ativos, ainda que sua função produtiva e econômica tenha entrado em declínio, como destaca Fernanda Silva, neta de José Amândio da Silva, antigo proprietário do local: “Há engenhos de farinha e há pessoas que se preocupam em preservá-los. O engenho do meu avô José Amândio hoje é o Museu Comunitário Engenho do Sertão, onde muita gente vai conhecer um pouco da nossa cultura”. Uma dessas pessoas é o estudante André Cordeiro, do Curso Profissionalizante em Turismo da EBM Maria Rita Flor, que participou do evento e relata que “Agora a gente está sabendo que eles não estão deixando que a cultura morra, que estão passando para os alunos, para a comunidade, uma coisa que eles faziam antigamente e que o pessoal acha que está morrendo”.

Rosane Lutchemberg rememorou a tradição da farinha de mandioca em Bombinhas destacando os proprietários de engenhos artesanais

Rosane Lutchemberg rememora a tradição dos engenhos artesanais em Bombinhas , sendo que alguns estavam presentes no painel

Assim, constituir um atrativo turístico é apenas uma dentre as várias funções do Museu, onde também são realizadas oficinas de arte-educação envolvendo aspectos da cultura popular local e percepção ambiental para estudantes de 14 a 18 anos e aulas de antropologia para pós-graduandos da Univali.  Ao ver mestres de engenho reunidos ali, Rosane completa: “Este museu é de vocês. Vocês estão se reapropriando do que é de vocês de direito”.

Além de atrativo turístico, o Museu Comunitário Engenho do Sertão também é um espaço de educação patrimonial e ambiental

Além de atrativo turístico, o Museu Comunitário Engenho do Sertão também é um espaço de educação patrimonial e ambiental

Enquanto a promoção de atividades educativas nos engenhos é um estímulo para a participação comunitária nestes espaços, a realização de intercâmbios entre proprietários destas unidades constitui uma oportunidade para trocar experiências e buscar soluções para obstáculos e limitações enfrentadas pelos processadores artesanais de mandioca ligados, por exemplo, à legislação sanitária e à comercialização dos produtos, de acordo com Gabriella Pieroni. Na sua fala, ela apresentou o projeto Ponto de Cultura Engenhos de Farinha, que já realizou um mapeamento dos engenhos no Litoral Catarinense e vem fomentando encontros entre membros destas comunidades, além de oficinas de mídia-educação e obras de melhoramento na estrutura física de algumas propriedades. Outro eixo de trabalho do projeto é a articulação com o movimento Slow Food e o Convivium Mata Atlântica, grupo de gastrônomos-expedicionários que viajam pelo Brasil buscando valorizar matérias-primas regionais. Isso porque o reconhecimento gastronômico da farinha de mandioca polvilhada de Santa Catarina pode abrir um canal de comercialização do produto e, consequentemente, de fortalecimento da produção artesanal e familiar deste item no estado. A coordenadora do projeto finalizou sua intervenção convidando a todos os mestres de Bombinhas e região a participarem das atividades, iniciativa apoiada pela presidente da Fundação Municipal de Cultura Nívea Bücker.

Gabriella Pieroni apresenta os eixos de trabalho do projeto "Ponto de Cultura Engenhos de Farinha"

Gabriella Pieroni apresenta os eixos de trabalho do projeto “Ponto de Cultura Engenhos de Farinha”

As diversas relações entre cultura gastronômica e patrimônio cultural continuaram permeando a conversa no Engenho, desta vez conduzida pela professora do Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hotelaria da Univali Yolanda Flores e Silva. Antropóloga de formação, a acadêmica realiza uma parte das suas aulas no próprio engenho, tentando, assim, “trazer saberes tradicionais para a sala de aula, através de visitas dos estudantes a locais como este”, explica. Estas visitas sempre incluem uma refeição preparada no próprio engenho, com ingredientes locais. Através destas vivências antropológico-gastronômicas, a professora busca chamar a atenção dos estudantes para a valorização “das pessoas que alimentam o mundo: os agricultores e pescadores”, diz. Nestas dinâmicas, Yolanda trabalha com a noção de “pertencimento cultural”, baseada no conhecimento da história e cultura locais. “Pertencer a um lugar como Bombinhas é, então, conhecer os engenhos”, conclui.

Yolanda Flores e Silva: "Não é porque a gente vira doutor que tem que esquecer que come farinha de mandioca".

Yolanda Flores e Silva: “Não é porque a gente vira doutor que tem que esquecer que come farinha de mandioca”.

Uma das orientandas de Yolanda é a nutricionista Hellany Brum, que está desenvolvendo sua dissertação de mestrado com as famílias de Bombinhas no contexto da preservação da cultura local como um novo segmento turístico. Ela apresentou seu projeto de pesquisa durante o evento, mostrando como a integração com universidades pode ser outra opção de apoio à manutenção de atividades nos engenhos.

A importância de agregar a pesquisa e extensão universitárias a outras iniciativas nestes espaços já fora apontada pelo engenheiro agrônomo da Epagri Enilto Neubert na primeira edição de Patrimônio Agroalimentar em Debate, em março deste ano. Ele participou novamente nesta segunda rodada, trazendo dados que indicam uma crescente revalorização da mandioca. Além de fazer um levantamento que encontrou 350 engenhos em funcionamento em Santa Catarina, Enilto citou pesquisas que demonstram diversas propriedades nutricionais da mandioca. O engenheiro elencou mais alguns tópicos relevantes para a discussão do tema que entraram em consonância com a fala de Gabriella, como manter o horizonte da geração de renda e da valorização do trabalho dos agricultores, lembrando também da necessidade de socializar as agendas para promover encontros entre as comunidades produtoras .

O engenheiro agrônomo Enilto Neubert, da Epagri, apresenta dados que reforçam a ideia de que os engenhos de farinha não morreram.

O engenheiro agrônomo Enilto Neubert, da Epagri, apresenta dados que reforçam a ideia de que os engenhos de farinha não morreram.

Outro palestrante do evento anterior que também veio a  Bombinhas foi Cláudio Andrade, proprietário do Engenho dos Andrade, no bairro de Santo Antônio de Lisboa, em Florianópolis. O artista plástico e historiador auto-didata expôs as diversas atividades educativas desenvolvidas em seu engenho, tombado como Patrimônio Histórico Municipal: oficinas de teatro, vídeo, contação de histórias e passeios de carro-de-boi. De acordo com Cláudio, mais de mil crianças já visitaram o local em 2013. Para ele, “o engenho deveria ser um bem tombado em cada município”, dada a sua relevância para a preservação da memória local.

Para fechar o painel, a intervenção especial de D. Rosa Melo, uma das mestres de engenho presentes. Rememorando a rotina de trabalho árduo iniciada na infância, ela fez um testemunho detalhado dos tempos em que a farinha de mandioca constituía uma das principais fontes de renda da região, como na década de 60: “Teve ano em que fizemos até 60 sacos de farinha. Foi uma luta. Nós, mulheres, chegava a inchar os pulsos de tanto raspar mandioca”. Ela conta que, sem água encanada nem energia elétrica, “era tudo muito duro naquele tempo. Mas eu não enjeitei não. Lutei, lutei e lutei”.

"Era tudo muito duro naquele tempo", afirma D. Rosa de Melo sobre a época em que a farinha de mandioca era uma das principais fontes de renda locais

“Era tudo muito duro naquele tempo”, afirma D. Rosa de Melo sobre a época em que a farinha de mandioca era uma das principais fontes de renda locais

Além das receitas com mandioca e milho que coloriram a mesa do café do evento – coruja (rosca de polvilho), nego deitado com banana (bolo de fubá na folha de bananeira), pudim de aipim na folha, beiju e bolo de aipim com coco –,  a herança dos tempos narrados por D. Rosa foi reavivada com uma roda de ratoeira formada pelas mulheres que estavam ali. O refrão “Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer/Também faz o triste amante de seu amor esquecer” foi acompanhado também por alguns homens, emocionando a todo o público.

“Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer Também faz o triste amante de seu amor esquecer”

“Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer
Também faz o triste amante de seu amor esquecer”

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Nego deitado, cabeça de gato, beiju:  herança cultural e gastronômica na mesa do café

Nego deitado, coruja, beiju: herança cultural e gastronômica na mesa do café