Diante da divulgação recente do MAPA DA ÁGUA pela agência Repórter Brasil, mostrando que 763 cidades brasileiras estão consumindo água com substâncias químicas e radioativas – Florianópolis figura no topo da lista, com 4 substâncias acima do limite seguro por 3 anos consecutivos -, a professora Sônia Corina Hess (Eng. Química – UFSC) foi taxativa: a situação dos recursos hídricos brasileiros é ainda mais preocupante do que dos alimentos. Além de resíduos de agrotóxicos – ainda que dentro dos extremamente permissivos “limites de segurança” brasileiros – chama a atenção a presença de 

subprodutos do processo de desinfecção da água, que podem causar doenças crônicas como o câncer. Na raiz desse problema, além de nosso modelo agrícola, está a baixa cobertura de saneamento básico no país. Veja mais na entrevista a seguir. 

 

A Professora fez o parecer do estudo do Ministério Público de SC que em 2019 detectou resíduos de agrotóxicos na água que abastece 22 municípios catarinenses. Quais as diferenças daquele estudo para o atual, do MAPA DA ÁGUA, em termos de dados, amostras, limites de segurança?

Os estudos são bem diferentes. O Ministério Público conseguiu verbas para analisar água dos municípios de Santa Catarina, avaliando 204 ingredientes ativos de agrotóxicos. Foi um estudo específico para agrotóxicos. O estudo que foi publicado recentemente é um levantamento feito junto ao Ministério da Saúde, os dados refletem o que é obrigatório as empresas de saneamento fazerem. A cada 6 meses a empresa de saneamento tem que apresentar relatórios da qualidade da água em relação não só a ingredientes ativos de agrotóxicos, como também de outros componentes que aparecem na água. Nesse resultado atual do Ministério da Saúde foi divulgado para o público como um alerta o que ficou acima do que a legislação permite, a portaria do Ministério da Saúde 888 de 2020. Apareceram ali produtos da cloração ou Nitrato, que é um indicador da presença de esgoto na água, ou de adubo. Então o estudo do Ministério  Público de 2019 mostrou tudo, e nenhum parâmetro daqueles ultrapassou a legislação brasileira. O que foi divulgado agora destaca  o que ficou acima do que a legislação permite, não só agrotóxico, mas outras substâncias tóxicas. 

Considerando então que os dados do Mapa da Água foram fornecidos pelo próprio Ministério da Saúde, podemos estimar que o quadro seja bem mais preocupante?
Claro que sim. Acontece que a legislação brasileira é muito mais permissiva do que outras legislações. Por exemplo, o glifosato, o agrotóxico mais usado no no Brasil e no mundo. A União Europeia permite 0,1 micrograma por litro de água, o Brasil permite 500.

Ou seja, é cinco mil vezes mais permissivo.  Cinco mil vezes mais veneno pode ter nas nossas águas do que os europeus aceitariam. E assim vai, todos os agrotóxicos na União Europeia têm esse mesmo limite, no Brasil esses valores são muito maiores. 
E outra coisa: a gente só legisla sobre cada ingrediente ativo de agrotóxico separado, a gente não fala nada de mistura. Na UE o máximo que se pode ter de mistura é 0,5 micrograma por litro; no Brasil não. Então a gente só considera um por um, não tem legislação do Brasil que coloca limites para soma dos ingredientes ativos. Então o fato de não aparecer alerta vermelho para agrotóxicos nesse relatório não significa que eles não estão lá, simplesmente é que eles ficaram abaixo do limite permitido no Brasil, que é um limite altíssimo quando comparado com outros países.

Como são estabelecidos esses “limites de segurança” para resíduos de agrotóxicos na água?
O pessoal da União Europeia eles fizeram uma coisa: decidiram politicamente que o máximo que eles permitiriam seria 0,1 micrograma por litro. Foi uma decisão para todos os agrotóxicos, é a mesma concentração limite: 0,1 micrograma por litro e a soma deles não pode ultrapassar 0,5 micrograma. Já no Brasil foram feitos estudos com animais,  pegou da literatura e considerou o consumo de água por dia do ser humano, o peso médio do ser humano e projetou isso para o quanto seria seguro dentro do consumo e dentro das condições do corpo humano. Entendeu a diferença? Houve até um critério técnico nisso, mas é diferente do critério da União Europeia, que passou a régua.
E olha só, dados de janeiro de 2022: 143 ingredientes ativos de agrotóxicos que são proibidos na União Europeia, são permitidos no Brasil. Dá mais de 30% do que a gente tem no Brasil. E é uma luta de várias entidades, que a gente tenha no Brasil uma legislação igual à da União Europeia, ter um limite de 0,1 para cada ingrediente ativo e 0,5 máximo da soma. Mas daí vem o Agro, né, o Agro que é pop, o Agro não quer isso. Porque daí vai prejudicar a imagem do Agro, vai mostrar que o Agro tá enchendo a nossa água de veneno, obviamente eles não querem isso.

No caso de Florianópolis, no MAPA DA ÁGUA foram encontradas duas substâncias com os maiores riscos de gerar doenças crônicas, como câncer e outras duas substâncias que também geram riscos à saúde acima do limite de segurança por três anos consecutivos. E três dessas substâncias são “subprodutos do processo de desinfecção”. A senhora poderia explicar como funciona isso?

Um fato importante é que os rios brasileiros estão muito mal tratados, a gente tem níveis horríveis para saneamento básico. Santa Catarina coleta 31,59% do esgoto. E não trata tudo, trata 98,69%. A empresa coleta, não trata tudo e devolve in natura, mas é pouquinho né. No total tratado, é 31,2% do esgoto gerado. O Paraná trata 74,63%, o Distrito Federal trata 90%. Roraima trata 70,39%. Floripa trata menos de 50% do esgoto, os dados que eu tenho são de 2018, Floripa trata 48%. Porto Alegre também trata menos de 50%. 
Aí os nossos mananciais estão cheios de esgoto. Quando uma empresa de saneamento capta a água de abastecimento, vem a água com esgoto. O que eles fazem? Eles são obrigados a fazer durante o tratamento, eles botam cloro, porque o cloro elimina os agentes patógenos que poderiam causar doenças. Acontece que sem querer é gerado subprodutos químicos da reação do cloro com essa matéria orgânica proveniente principalmente de esgoto, esgoto não tratado. Então é um drama isso,  porque os nossos mananciais de abastecimento público no Brasil em sua grande maioria estão contaminados por esgoto. Tem cidades que têm manancial subterrâneo e a má notícia é que muitos deles estão contaminados por agrotóxicos, como a gente viu no estudo do Ministério Público. 

A CASAN, Companhia Catarinense de Águas e Saneamento, afirma que “A formação dos subprodutos da desinfecção pode ocorrer pela presença de cloro na água e de matéria orgânica natural dissolvida (ácidos húmicos e fúlvicos), provenientes do carreamento do solo das margens para o leito do rio de captação”. É água contaminada por esgoto ou é para “limpar” de uma nascente?
Isso é verdade também, mas não é só isso, o principal é o esgoto que está indo para água. Por que a Casan não falou do esgoto? Porque ela é a empresa de saneamento, é ela que em muitos municípios gerencia o tratamento de esgoto. É ela que está com problemas para conseguir verba para tratar os esgotos. Claro que eles não iam dizer “nós jogamos esgoto na água, depois pegamos a água e aí dá um subproduto lá”, entendeu? Por isso que ela falou que é o carregamento de matéria orgânica, mas o principal é esgoto. 
Aí a gente pensa: de onde vem a água de Florianópolis? Vem de Santo Amaro, lá do Pilões, daquela região lá, então o que acontece lá, nos afeta diretamente. Uma parte vem da Lagoa do Peri, imagina a lagoa do Peri , o pessoal vai lá, toma banho lá, faz tudo. Se é manancial de abastecimento, tem que deixar protegido, simples assim.  

Existem alternativas para o tratamento da água que não gerem esses subprodutos?
Se fossem usar metodologias mais avançadas ninguém conseguiria pagar a conta de água. Existem tratamentos de altíssimo nível que eliminam subprodutos, fazem purificação extra. Muitos condomínios já tem, tem gente rica ao redor do mundo que investe nisso. Mas a água de abastecimento público realmente é o cloro que é o agente mais viável. O que nós temos que fazer é lutar para proteger os mananciais de abastecimento público. Não deixar colocar agrotóxico, não deixar colocar esgoto. Ter saneamento básico, gente! Santa Catarina tem só 31% do esgoto coletado, é ridículo para um estado que se diz desenvolvido. Estamos passando vergonha. 

Ainda no caso de Florianópolis, foram encontrados resíduos de 27 agrotóxicos – mas dentro do “limite de segurança”. Pelo menos cinco deles são proibidos no Brasil – endossulfan, endrin, metamidofos, molinato, parationa. Isso indica  que ainda estão sendo usados ou é resíduo do uso de anos anteriores?

 

Tem substâncias que não são usadas há muito tempo, mas elas continuam no ambiente, então é realmente complicado. Mas também pode ter gente usando ainda, porque tem estoque velho. Na verdade é muito difícil a gente saber. A fonte da água é que tem que ser estudada, de onde veio isso? 
Eu até desconfio desse resultado, porque Aldrin, Dieldrin, clordano, DDT, lindano, trifularina, tudo isso é coisa que já foi proibida há muito tempo, então eu não consigo visualizar de onde pode ter vindo isso. Pentaclorofenol, gente, isso é muito antigo, já faz muito tempo que foi proibido. O resíduo fica muito tempo, mas para conseguir detectar agrotóxicos que já foram proibidos há tanto tempo, e são muito que eles identificaram… Sinceramente eu acho muito estranho que ele esteja aparecendo ainda.

Diante desse quadro, o que pode ser feito?
Qual é a solução? É não poluir. Como se faz isso? Primeiro, saneamento básico. Segundo, a população abraçar o rio, a população abraçar a sua fonte de água, a gente tem que assumir esse compromisso 

cidadão, a água é nossa! Ninguém tem direito de jogar esterco, esgoto na nossa água. E quando a gente fala de excreta, não é só do ser humano não, tem a pecuária industrial também que tá jogando milhões de toneladas de esterco na água e no solo também. 
Uma coisa que sensibiliza muito as pessoas é a qualidade da água, porque a água é o nosso principal alimento. Vamos abraçar a água, cuidar, enxergar. Agora que vem esses estudos, muita gente fica preocupada, mas a maioria das pessoas não sabe de onde vem a água que chega na sua torneira. Não sabem também o que está acontecendo lá na fonte, se tem gente jogando esgoto, se tem gente passando veneno do ladinho do rio, tem gente que não cuida da margem do rio que está sem árvores e vai a terra para dentro do rio, assoreia. É necessário um movimento cidadão: de onde vem a água que eu bebo e o que acontece com essa água antes de chegar na minha torneira?  
Tudo que acontece ao redor do Rio, do manancial, acaba interferindo na qualidade da água. Eu não sou favorável a ficar criticando a empresa de saneamento, porque a empresa de saneamento é responsável pelo saneamento, ela é responsável por entregar a água para gente de forma adequada, na qualidade e na quantidade adequada, mas ela não tem como controlar toda uma bacia hidrográfica. Isso é uma política de governo, uma política da comunidade.
O governo é movido por pessoas, se a comunidade não se importa, o governo vai se importar muito menos. É ligar o alerta, pra população para saber que as pessoas estão sim adoecendo porque a água tá vindo poluída. Então vamos lutar por isso, exigir que as políticas públicas sejam sim efetivas na proteção da água, porque é nossa saúde que está em jogo.

 

Pois é, fala-se bastante do resíduo de agrotóxicos nos alimentos, mas não tanto na água…
A água todo mundo toma, é o nosso principal alimento e deveria estar na nossa prioridade diária. E realmente é um assunto negligenciado. O alimento algumas pessoas podem escolher, a água não. Então tu vê só a contradição, tu tem lá um alimento orgânico, tu vai lavar, vai preparar esse alimento 

com água contaminada, com agrotóxico, com outras porcarias. 
O meu foco é a água, porque é universal. Porque a água todo mundo consome. E é uma uma situação muito grave, eu posso até dizer com tranquilidade que é mais grave do que dos alimentos. 
Ok, 79% do veneno usado no Brasil é pra commodities, não é pra alimentação humana, é pra soja, milho, cana, algodão. Então o que usam de veneno na nossa comida é 20% do total de veneno usado no Brasil. Agora, a água recebe tudo, vai pro ar, volta na forma de chuva; vai pra terra, contamina o lençol freático. Eu tento sempre pedir isso: vamos focar na água. Muita gente ficou preocupada com o que apareceu nesse mapa, mas isso é consequência, a gente não tá cuidando da causa, a gente não tá dando a devida atenção para a defesa da água. A gente tá condenando crianças a terem uma vida adulta doente.

 

Sônia Corina Hess é professora aposentada do departamento de Engenharia Química da UFSC, Campus Curitibanos.