Seminário reuniu mais de 200 pessoas ao longo de 2 dias de programação


“Eu vendo mais de 90% da minha produção de açafrão e gengibre pra um atravessador de São Paulo. E eu vejo que esses produtos voltam pras feiras daqui de Santa Catarina com o preço lá em cima. E aí acham que o alimento orgânico é caro”. A fala do agricultor Eduardo May, que cultiva alimentos agroecológicos na comunidade do Pinheiral,
interior de Major Gercino (120km de Florianópolis), reflete alguns dos problemas da cadeia de produção e consumo de alimentos orgânicos no Brasil: a logística, a atuação de atravessadores e, sobretudo, o preço. “Os feirantes daqui fazem pedidos pequenos desses produtos, então não compensa gastar com o frete, nem pra mim nem pra eles. Aí eu acabo vendendo pra São Paulo, que sempre é em quantidade”, explica o agricultor. No mercado local, ele comercializa suco de uva orgânica,

Os agricultores Valdenir (esq) e Eduardo (dir) participaram do Seminário


produzido na fábrica da Cooperativa que ele participa, a Coopermajor.
Para tentar desatar alguns desses nós, Eduardo participou do Seminário Internacional “Alimentos Agroecológicos e Redes de Produção-Consumo”, promovido por Cepagro, LACAF e Slow Food nos dias 27 e 28 de maio, na UFSC. O objetivo do Seminário foi compreender e fortalecer redes de produção-consumo de alimentos agroecológicos. Ou, nas palavras do agricultor Valdenir May, de Angelina, que veio junto com o primo Eduardo ao evento: “juntar os três lados: produtores, comerciantes e consumidores”. Eduardo completa: “é muito importante incentivar os consumidores a pensar a logística junto com a gente”.

Seminário abordou gargalos e estratégias para aproximar produção e consumo de alimentos agroecológicos


A programação do Seminário teve palestras, mesas de debate e também atividades em grupos de trabalho sobre temas como: acesso a alimentos agroecológicos, valorização de alimentos da agricultura familiar, consumo político, organização de consumidores, formalização de mercados agroecológicos, articulação entre restaurantes e grupos de agricultores. A aproximação “dos três lados” da cadeia alimentar agroecológica e o maior envolvimento de consumidores/as nas dinâmicas de distribuição de alimentos foram algumas das estratégias colocadas ao longo do evento para ampliar e democratizar o acesso a alimentos bons, limpos e justos.
Comer – e consumir – é um ato político
O Seminário começou com auditório cheio e mesa farta de alimentos agroecológicos cedidos pelo grupo de agricultores AGRODEA, de Imbuia. Na palestra de abertura, a professora Francesca Forno, da Universidade de Trento (Itália), abordou o tema do “consumo político”: a possibilidade de consumidores/as intervirem social e ambientalmente através da mudança de seus hábitos de consumo. “Os modelos de produção e consumo são elementos chave para discutir  questões ambientais e sociais. Assim, nossas escolhas de consumo podem mudar situações sociais ou políticas. Em vez de pressionar o Estado, pressiona-se o mercado ”, afirma Francesca, que trouxe diversos exemplos de campanhas de boicote e organização de consumidores/as de impacto na Itália e outros países da Europa. Neste contexto, “redes agroalimentares sustentáveis emergem para fazer frente ao sistema agroalimentar industrial”, explica a professora italiana, que pesquisou grupos de consumo de alimentos na Itália. Em sua investigação, verificou que 62% das pessoas envolvidas nessas experiências são mulheres, grande parte com alto nível de instrução. Como mudanças de hábitos após engajarem-se nessas iniciativas, as/os participantes da pesquisa passaram a cultivar  alimentos em casa, consumir mais alimentos locais e sazonais, além de pensar e atuar  mais sobre reciclagem e alternativas de mobilidade – indicando como a transformação da lógica de alimentação pode ter outros reflexos além da mesa.
Já Rafael Rioja Arantes, do Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, apresentou iniciativas práticas de sua organização pela promoção de hábitos alimentares saudáveis, com incidência política e acesso à informação. Uma das iniciativas mais conhecidas do Instituto é o Mapa de Feiras Orgânicas, um site onde consumidores/as podem apontar e sugerir atualizações sobre iniciativas de comercialização de orgânicos. O Mapa surgiu a partir de uma pesquisa do IDEC que apontou que nas feiras os alimentos orgânicos eram pelo menos 50% mais baratos do que nos supermercados. “Nosso objetivo é unir as pontas da produção e do consumo”, afirma Rafael. “É muito importante a participação de consumidores para manter o mapa atualizado”, completa. Outra frente importante de atuação do IDEC é quanto a rotulagem de alimentos, desenvolvida em parceria com a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, lutando para que sejam indicados nos rótulos se há componentes transgênicos entre os ingredientes, por exemplo, além de indicar os níveis de açúcar e gordura em alimentos industrializados.
Fechando a programação da 2ª, um colorido café agroecológico com alimentos da época e regionais preparados pelos ecochefs do Slow Food Brasil Mata Atlântica.
Prática ancestral, ciência e movimento social
Na terça-feira, o dia iniciou com a palestra do professor Oscar José Rover, coordenador do Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar (LACAF/UFSC). Ele respondeu para a diversidade de público presente o questionamento: O que são alimentos agroecológicos? Segundo o pesquisador, que é também um dos representantes do Laboratório de Comercialização da Agricultura Familiar (LACAF), “a Agroecologia e a produção orgânica se caracterizam justamente por aquilo o que elas não são, ou não utilizam”. Livre de agrotóxicos e transgênicos, a Agroecologia, segundo Oscar, tem pelo menos três dimensões: a de ser uma prática ancestral, uma ciência de manejo sustentável, ao mesmo tempo em que é um movimento social.
São justamente essas três características que diferenciam os alimentos agroecológicos dos alimentos orgânicos. Enquanto a ênfase da produção orgânica está na certificação do alimento, que pode ser cultivado em monoculturas, a produção agroecológica enfatiza também a certificação dos sistemas de produção e tem como objetivo a democracia e a justiça agroalimentar com preços justos a consumidores e agricultores.
Cooperativas de consumo, ecogastronomia, participação social: praticando a responsabilidade como consumidores/as
Durante todo o evento, o acesso aos alimentos agroecológicos foi colocado como um dos principais desafios da Agroecologia atualmente. Como aproximar quem consome de quem produz? A fim de aprofundar a discussão sobre o assunto, Eduardo Rocha, presidente do Cepagro, Sidilon Mendes, da COOPET (Cooperativa de Consumidores de Produtos Ecológicos de Três Cachoeiras) e Fabiano Gregório, ecochef do movimento Slow Food, se reuniram no debate Acesso aos alimentos agroecológicos e orgânicos e o papel dos consumidores.
Eduardo Rocha iniciou sua fala com a reflexão sobre o alimento como um direito ao lembrar que foi há apenas nove anos que a alimentação se tornou um direito social garantido pela Constituição. Apesar disso, hoje em Florianópolis, o número de pessoas com insegurança alimentar está perto dos 30 mil. Ou seja, quase 10% da população não tem acesso a alimentos seguros e adequados para consumo. Para o presidente do Cepagro, “o desafio é romper com o individualismo nos processos de compra”.
Foi unanimidade entre os debatedores que é preciso haver uma corresponsabilidade na garantia do acesso aos alimentos agroecológicos, cabendo aos cidadãos dar preferência aos alimentos produzidos de forma limpa e justa.  Comprar diretamente com agricultoras/es em feiras ou por meio das cestas semanais, como na Célula de Consumidores Responsáveis, são maneiras de contribuir com o movimento agroecológico e se aproximar da realidade do agricultor. Mas é possível dar um passo além.
É o caso do grupo de consumidores de Florianópolis formado pelo Cepagro através do Projeto Consumidorxs e Agricultorxs em Rede, apoiado pela Misereor. Com o Curso de Formação Consumidores e Agroecologia, o grupo tem conhecido de perto a realidade de agricultores agroecológicos, as dificuldades enfrentadas por eles e os benefícios que esse modelo de produção traz para ambos. “Não é um caminhão que traz o alimento até a gente. São pessoas, e é importante que o consumidor tenha contato com a realidade do campo, com o agricultor”, complementou Eduardo.
Sidilon Mendes compartilhou a experiência com a Cooperativa dos Consumidores de Produtos Ecológicos de Três Cachoeiras-RS (COOPET), que existe há mais de 20 anos. A COOPET comercializa alimentos a preço de custo para seus 100 cooperados/as, que pagam uma mensalidade de R$ 35 para manutenção do espaço e pagamento de funcionários/as. Como uma dica para as próximas cooperativas de consumo a serem formadas, Sidilon aponta que seria interessante que “cada cooperado prestasse também algumas horas de serviço à cooperativa, que fossem 4 horas mensais. Varrendo o chão, limpando prateleira, ajudando a organizar o estoque”, explica.  

A riqueza da sociobiodiversidade catarinense esteve presente no Seminário


Com o olhar de quem se coloca entre as duas pontas, consumidores e produtores, o ecochef Fabiano Gregório afirma que faz diferença conhecer o caminho dos alimentos. Ele trabalha com Agroecologia há 12 anos e afirma: “O ecochef não pode se limitar as receitas. Ele tem que ir à campo e conhecer como o seu alimento é produzido, os agricultores, a sazonalidade”. Uma das frentes de atuação de Fabiano é na Aliança de Cozinheiros Slow Food, grupo de ecochefs que fazem incidência em restaurantes para adoção de alimentos agroecológicos – com toda sua diversidade e sazonalidade – em seus cardápios. “Com criatividade e planejamento, conseguimos usar a diversidade a nosso favor”, afirma Fabiano.
E quando a margem de escolha e de acesso a alimentos orgânicos é mínima? Como exemplificou Eduardo Rocha: “aqui atrás de nós está o Maciço do Morro da Cruz, onde provavelmente muitas pessoas nem sabem o que é um alimento orgânico”. A estudante de Ciências Sociais e representante da Rede SAN de Mulheres Negras, Luana Brito, completa: “considerando que 54% da população brasileira é negra, a Agroecologia ainda é elitizada e branca”. Luana, que recebe uma bolsa-auxílio da universidade, conta que consome  alimentos orgânicos na Feira da Universidade ou quando são servidos no Restaurante Universitário – mostrando a importância de políticas públicas de compras institucionais para ampliar o acesso a esses alimentos. “Mas quando tem pessoas que precisam escolher entre pagar as contas ou comprar uma cesta de orgânicos, é preciso refletir sobre quem são as pessoas que têm acesso ao alimento de qualidade e orgânico?”, questiona a estudante. Para ela, o Seminário foi uma oportunidade de somar e ampliar esse debate tão necessário.  
Planilha aberta, políticas públicas, venda direta: as estratégias de  valorização da agricultura familiar agroecológica
“O mercado convencional não valoriza o alimento. Os supermercados podem ser um canal ‘seguro’ de comercialização, mas querem comprar a um preço que inviabiliza a produção agroecológica”. Dividindo-se entre o trabalho como docente e feirante na UFSC, o agricultor-agrônomo Anderson Romão observa o mercado de alimentos orgânicos agroecológicos como pesquisador e fornecedor. Membro do Grupo Flor do Fruto da Rede Ecovida de Agroecologia, Anderson e seus companheiros de grupo fornecem alimentos para a Feira Orgânica do Centro de Ciências Agrárias da UFSC, para grupos de cestas de consumo e também para a merenda escolar. Na mesa “Estratégias de valorização da agricultura familiar”, ele aponta que a venda direta ainda é a melhor estratégia de comercialização para a agricultura familiar agroecológica. “E também de comunicação com nossos/as consumidores/as, com quem conversamos e estamos abertos para receber em nossas propriedades”, completa. “O consumidor tem que entender a lógica da produção agroecológica. Ele precisa saber que não tem como ter alface o ano inteiro.” Anderson acredita que a educação é a base de tudo, e o consumidor também precisa ser educado e conscientizado, até mesmo sobre as sazonalidade e intemperanças que influenciam no produto final. Ele vê de perto como a comercialização direta facilita essa compreensão, quando se negocia com um comprador intermediário essa relação é perdida.
Assim como a organização de grupos de consumidores é importante para praticar novas lógicas de consumo e encurtar as distâncias da comercialização, Anderson afirma que “a organização dos/as agricultores/as em grupo traz resiliência frente ao mercado convencional”. Anderson destaca a importância do fortalecimento de políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos para ampliar o acesso a alimentos agroecológicos e propiciar alternativas de comercialização para as famílias agricultoras. “Em Biguaçu, por exemplo, as crianças comem açaí e banana orgânicos nas escolas”.
Mas essas iniciativas precisam andar junto com a Reforma Agrária e programas de distribuição de renda, de acordo com Fábio Santos Teixeira Mendes, do Instituto Chão (SP), que participou na mesa com Anderson e Valentina Bianco, do Slow Food. “Sem mexer nisso fica difícil falar em alimentação saudável. Enquanto não fizer a reforma agrária e a redistribuição de renda, tudo o que a gente fizer é paliativo. Ajuda, mas tem que mexer na questão da terra”.
O Instituto Chão é um espaço de comercialização de alimentos na capital paulista que trabalha com uma planilha aberta de custos: quem compra lá sabe quanto eles pagaram para adquirir os alimentos – priorizam-se cooperativas, assentamentos da reforma agrária e agricultores/as familiares -, além das contas de luz, aluguel. Os alimentos são vendidos basicamente a preço de custo, sugerindo-se um adicional de 30-35% no valor para cobrir os gastos de manutenção do espaço e salários da equipe, que hoje conta com 22 pessoas. O Chão comercializa mais de R$ 1 milhão em alimentos todos os meses. “Não abrimos mão das relações justas de trabalho. Na nossa equipe, todos ganham o mesmo salário. E, com agricultores/as, esperamos que tenham relações justas de trabalho também”, afirma.
Valentina Bianco, do Slow Food, falou sobre as diversas campanhas promovidas pelo Movimento para valorização do alimento, como a Disco Xepa (centrada no tema da diminuição do desperdício), a Festa Junina sem Transgênicos e o Banquetaço.
Outra iniciativa de valorização e democratização do acesso a alimentos agroecológicos apresentada durante o Seminário foi a da Rede de Cidadania Agroalimentar, também em formato de mapa virtual. A RCA lista experiências de venda direta em que a distância entre produção e comercialização seja de no máximo 200km.
WhatsApp: grande aliado na articulação de consumidores/as e produtores/as
Na terceira e última parte do Seminário, grupos de trabalho se reuniram para discutir a articulação entre restaurantes e produtores, a formalização de mercados agroecológicos e formação de grupos de consumidores. Foram criados grupos de whatsapp de todos, com participantes inscrevendo-se para colaborar na coordenação e animação destes. O GT dos Restaurantes fará um cadastro de agricultores/as e restaurantes, enquanto o de Formalização propõem-se a fortalecer o diálogo com órgãos públicos de fiscalização e controle. Dos consumidores, ficou o encaminhamento de articular mais experiências de grupos de consumo, incorporando práticas como a planilha aberta e a construção coletiva de preço.

Donizete (de boné, à esq) aproveitou para incrementar a diversidade de alimentos cultivados em sua propriedade, comprando sementes crioulas da ASPTA, que também participou do Seminário


Enquanto a comunicação foi apontada como um dos grandes gargalos para aproximação entre produção e consumo, ferramentas como o WhatsApp mostram-se como grandes aliadas neste esforço. O grupo AGRODEA, que fornece alimentos para a Célula de Consumo Responsável da UFSC, aproveita bastante essa ferramenta. “Se não fosse o zap, a Célula não funcionava”, conta Dulciani Allein Schlikmann, articuladora da Célula em Imbuia. O agricultor Donizete Goerdert, que cultiva alimentos para o grupo, concorda. Além de vender pela Célula de Consumo Responsável, ele tem um grupo de WhatsApp com consumidores/as da própria Imbuia, para quem ele fornece cestas semanalmente. “Metade da minha produção eu vendo para cestas e para a Célula. A outra metade é para mercados e empórios da região. Forneço também para a merenda”, conta Donizete, exemplo de diversificação agroecológica na produção e na comercialização.
O cozinheiro Jorge Luiz Lopes, de Florianópolis, traz outra experiência de articulação entre produção e consumo via zap-zap. Ele articula o grupo de compras coletivas Madresita, que tem 108 participantes na capital catarinense. “Com a compra coletiva, conseguimos ampliar o pedido. Aí o frete vale a pena”, explica Jorge. A família que fornece para o grupo é de Rio Fortuna e cultiva uma diversidade de alimentos em 2 hectares de agrofloresta. “Eles começaram fazendo entrega de camionete e hoje têm 2 caminhão baú para entregas”, afirma Jorge. Exemplo prático do que disse o agrônomo-agricultor Anderson Romão: ao comprar da agricultura agroecológica, estamos viabilizando a permanência dessa família no campo.

“Não gosto muito de cozinhar. Mas hoje tenho prazer em fazer isso, por ser um alimento sem veneno. Sou filha de agricultores, esses alimentos trazem minhas memórias de infância, de quando eu comia tudo que era plantado pela minha mãe ao redor de casa. Ainda preciso me desconstruir com a sazonalidade. Mas, desde que comecei a comprar alimentos pela Célula de Consumo, passei a comer plantas como ora-pro-nobis, beldroega e as folhas da beterraba e da cenoura” Teresinha Rocha Cavaleiro, dona de casa e membro da Célula de Consumo Responsável da UFSC.