Semear no período certo, manter irrigação, adubação, poda e capina em dia, preparar novas mudas e adquirir os insumos necessários, fora o planejamento de produção e o controle das finanças que é constante e, além de tudo isso, se ocupar da venda e distribuição das colheitas. Na agricultura familiar o trabalho é diário e não acaba nunca. E é sob a lógica de democratizar tecnologias adaptadas para esta realidade que pesquisadores, desenvolvedores e agricultores vêm co-criando o LiteFarm, um aplicativo web gratuito e de código aberto voltado para a gestão de sistemas agrícolas diversificados.

Imagem de um celular, sob um fundo preto, com a tela aberta no aplicativo LiteFarm

Atualmente, a ferramenta vem sendo utilizada por pelo menos 3 mil usuários em mais de 125 países. Ela permite o registro e controle de cultivos, colheitas e tarefas diárias comumente realizadas em uma propriedade agrícola familiar, além de registros relacionados ao controle financeiro, como compra de ferramentas e insumos e venda da produção. A partir dos registros, o LiteFarm disponibiliza, sob demanda dos usuários, relatórios que podem embasar a tomada de decisões e a gestão das propriedades.

Mas mais do que auxiliar no gerenciamento agrícola, o LiteFarm visa criar uma ponte entre agricultores/as e pesquisadores/as. Começou a ser desenvolvido no Centro de Sistemas Alimentares Sustentáveis da University of British Columbia (UBC), no Canadá, mais precisamente a partir da UBC Farm, fazenda experimental da universidade canadense que na época era coordenada pela PhD e professora Hannah Wittman.

Pesquisando, Hannah e alguns de seus/as estudantes de pós-graduação constataram a ineficiência dos censos agrícolas em produzir informações compatíveis e sensíveis aos sistemas agroecológicos, ou seja, sistemas agrícolas altamente diversificados. Por outro lado, observaram que na própria fazenda experimental da UBC havia muitas informações disponíveis – sobre cultivos, colheitas, comercialização, insumos, etc. – mas que estavam dispersas. Foi a partir da necessidade de centralizar as informações para fazer análises mais sistemáticas que a ideia do LiteFarm começou a ser gestada.

Ferramenta digital para a pesquisa participativa em Agroecologia

Após mapear aplicativos de gestão agrícola existentes, o pesquisador e atualmente Professor na University of Colorado Boulder, Zia Mehrabi, notou que a grande maioria deles eram voltados para a agricultura convencional e de larga escala. A partir daí, Mehrabi liderou o desenvolvimento do LiteFarm, desde o seu início, com a participação de uma equipe de cientistas, agricultores, designers, desenvolvedores, funcionários e estudantes de graduação da UBC. Por sua capacidade de compilar informações sobre agricultura diversificada, desde 2020, a plataforma vem sendo utilizada também pela equipe do Cepagro e de outras 7 organizações que promovem a Agroecologia no Brasil, Paraguai, Equador, El Salvador e México.

São organizações que conjuntamente vêm coletando e sistematizando evidências científicas para o desenvolvimento de indicadores agroecológicos. Este esforço coletivo se dá através do projeto Agroecologia na América Latina: construindo caminhos, desenvolvido em parceria com a Universidade de British Columbia e com apoio da Fundação Inter-Americana.

O projeto conta com a participação de mais de 126 famílias agricultoras que encontram-se em diferentes níveis de transição agroecológica. Todas já estão cadastradas no LiteFarm e aos poucos vêm registrando informações sobre suas propriedades com a ajuda de técnicos/as de campo. No Paraguai, já são 15 famílias cadastradas com o apoio da Asociación de Productores Orgánicos (APRO), uma das organizações que participa do projeto. A partir de fevereiro, 15 novas famílias paraguaias irão se agregar ao projeto.

Para Fernando Melgarejo, técnico de campo da APRO, disseminar o uso do LiteFarm é importante para que “possamos utilizar uma ferramenta que nos ajude não só a fornecer informações ou dados reais, mas também que possa tornar visível ao produtor seu esforço, seus sonhos e desejos. E, às instituições, indicadores para melhorar o que está sendo feito”. Segundo ele, uma das expectativas da APRO com o projeto é “unificar critérios e diretrizes de dados para oferecer resultados e sobretudo informações úteis sobre a produção agroecológica e orgânica vinculando experiências locais e internacionais”.

Agricultora colhendo legumes em uma roça diversificada. Ela veste o boné da APRO, Asosiación de Productores Orgánicos do Paraguai.

Um objetivo desafiador, conforme explica Dr. Hannah Wittman, que vem coordenando o componente de pesquisa do projeto: “Agroecossistemas diversificados são complexos, com muitos elementos a serem considerados nas análises de sustentabilidade – da saúde do solo, biodiversidade e rendimento, à segurança alimentar e qualidade do trabalho. Poucos projetos de pesquisa são capazes de coletar dados através de uma gama disciplinar tão ampla em um determinado sistema. E o LiteFarm permite que os próprios agricultores participem da pesquisa, compartilhando dados holísticos sobre toda a sua propriedade, desde as práticas até os resultados”.

Para além da pesquisa-ação sobre indicadores agroecológicos, o aplicativo já vem colaborando em outras pesquisas voltadas para a agricultura de base agroecológica. Um dos exemplos é a pesquisa da mestranda em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Larisse Cavalcante, que tem por objetivo compreender aspectos da diversificação produtiva utilizando o LiteFarm.

“Trata-se de uma investigação multi-escala: aspectos mais complexos estão sendo avaliados a partir da base de dados global do aplicativo; já na escala local, além do trabalho de extensão com agricultores familiares, auxiliando-os a usar a ferramenta, está sendo também estudado o uso de plantas alimentícias não convencionais (PANC), informação que será retornada para os agricultores após a conclusão da pesquisa”, explica Larisse.

No Paraguai, técnicos da APRO estão dialogando com pesquisadores da Facultad de Ciencias Agrarias da Universidad Nacional de Asunción para desenvolver conjuntamente pesquisas com foco na agricultura orgânica.

Privacidade e soberania de dados

O LiteFarm é uma iniciativa sem fins lucrativos desenvolvido com base no princípio da soberania de dados, ou seja, os usuários permanecem donos de seus dados, podendo optar por compartilhá-los ou não a qualquer momento. Os dados gerados pelo usuário não serão utilizados para fins comerciais e poderão ser compartilhados somente de forma anônima para fins de pesquisa não comercial.

Foto de uma mão segurando um celular no qual aparece uma tela do aplicativo LiteFarm.

Na percepção dos/as técnicos/as de campo das 8 organizações envolvidas com a pesquisa-ação sobre indicadores agroecológicos, ainda existem algumas barreiras para o uso mais assíduo do aplicativo por parte de agricultores/as. Entre elas está a limitação de acesso à internet e de inclusão digital no espaço rural, bem como alguns aspectos do próprio LiteFarm que ainda precisam ser adaptados. E é justamente buscando esse aprimoramento, que mensalmente estas organizações têm se reunido com representantes do LiteFarm, visando contribuir com sugestões para que a plataforma torne-se cada vez mais amigável a agricultores/as familiares e suas mais diversas realidades.

O projeto “Agroecologia na América Latina: construindo caminhos” é desenvolvido pelo Cepagro, Movimento Mecenas da Vida, CETAP (Brasil), Centro Campesino para el Desarrollo Sustentable, Tijtoca Nemiliztli (México), Fundesyram (El Salvador), Movimiento de Economía Social y Solidaria del Ecuador (Equador) e Asociación de Productores Orgánicos (Paraguai).