Além de contribuir com a perda da biodiversidade, com as mudanças climáticas e colocar em risco a saúde pública, até hoje a agricultura industrial também não conseguiu resolver o problema da fome. Segundo levantamento realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), a fome atingiu mais de 33 milhões de brasileiros em 2022 e somente 4 entre 10 famílias conseguiram acesso pleno à alimentação.

Esta não é uma realidade completamente nova e nem somente brasileira; é por isso que movimentos agrários, membros da sociedade civil, organizações intergovernamentais e estudiosos têm ressaltado cada vez mais o potencial transformador da Agroecologia como uma alternativa ao paradigma do sistema agroalimentar industrial.

Este foi o contexto que motivou a PhD pela University of British Columbia (UBC), Dana James a pesquisar “O Potencial Transformador da Agroecologia” a partir de uma abordagem baseada em indicadores. Um dos objetivos de sua tese foi avaliar o nível de transição agroecológica dos municípios brasileiros e, a partir disso, tentar entender quais fatores favorecem os processos de transição agroecológica e quais fatores representam barreiras ao avanço da Agroecologia.

Para entender o cenário da Agroecologia nos municípios brasileiros, Dana utilizou dados do último Censo Agropecuário Brasileiro (2017) e os comparou com indicadores inspirados nos 10 Elementos da Agroecologia, uma ferramenta desenvolvida pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que visa servir de guia para formuladores de políticas interessados no planejamento, gestão e avaliação de transições agroecológicas.

Por exemplo, a diversificação é característica fundamental na transição agroecológica, tanto para garantir a segurança alimentar e nutricional, quanto a conservação ambiental. Portanto, para o elemento diversidade, a FAO relacionou indicadores de cultivos; animais; árvores/perenes; e atividades, produtos e serviços. Dentre estes, o Censo Agropecuário Brasileiro nos fornece indicadores úteis sobre cultivo e criação animal. 

Contornando as limitações impostas pelo Censo, a partir das informações disponibilizadas, Dana atribuiu pontuações individuais para cada indicador e depois calculou a média dos indicadores para obter a pontuação de cada um dos elementos. Por fim, as pontuações dos elementos foram calculadas para obter a pontuação agroecológica total por município.

Figura 1. Pontuação agroecológica em nível municipal no Brasil em 2017, usando a pontuação média total dos Elementos da FAO. Áreas mais amarelas correspondem a pontuações agroecológicas mais altas.

O resultado disso é um mapa do Brasil onde as áreas luminosas (em amarelo) representam os municípios com melhor pontuação agroecológica e as áreas mais opacas (em azul) representam aqueles com pontuações mais baixas, ou seja, cujos indicadores apontam para um menor nível de transição agroecológica segundo os elementos da FAO.

Pontuações agroecológicas dos municípios brasileiros

A primeira observação feita por Dana foi que as regiões Norte, Nordeste e parte do Sudeste (como em Minas Gerais) pontuaram na extremidade superior, embora a pontuação mais alta ainda estivesse em torno de 60/100. Enquanto isso, o Centro-Oeste tem a pontuação média regional mais baixa, bem como os estados do Paraná, Mato Grosso e São Paulo. Esse padrão reflete o fato de que essas áreas têm maior presença do agronegócio e sua produção industrial de commodities, animais e culturas comerciais para exportação.

Figura 2. Pontuação agroecológica a nível municipal no Brasil em 2017, usando a pontuação média total dos Elementos da FAO. As áreas mais amarelas corresponderam a pontos mais altos para o desenvolvimento agroecológico.

Mesmo nesse contexto, alguns municípios desta região destacam-se de acordo com a abordagem adotada por Dana. Olhando para os pontos mais iluminados do mapa, surge o questionamento: Por que esses municípios têm uma melhor pontuação em agroecologia do que os municípios vizinhos, mesmo situando-se em um mesmo contexto?

Dana buscou responder este questionamento a partir de uma revisão bibliográfica. Segundo sua pesquisa, um dos fatores que podem contribuir para uma melhor pontuação agroecológica destes municípios é o uso e manutenção de práticas culturais tradicionais, como agricultura diversificada e com poucos insumos e atividades tradicionais de extrativismo.

Outro potencial fator é a proximidade a áreas urbanas, principalmente a capitais, o que representa um melhor acesso a recursos e mercados. O acesso a políticas públicas e programas de apoio, voltados à compra de alimentos orgânicos e de apoio a iniciativas de desenvolvimento sustentável, como redes de agroturismo, é outro possível fator.

Além disso, os movimentos sociais e redes de agricultores parecem ser outro fator importante. Municípios com alta pontuação tem forte presença de comunidades quilombolas e da reforma agrária, bem como redes de Agroecologia e certificação participativa ativas e atuantes, como a Rede Ecovida.

Por outro lado, o principal fator relacionado à baixa pontuação da Agroecologia, parece ser justamente a presença da agricultura industrial e especializada, voltada para exportação.

Limitação do Censo Agropecuário Brasileiro

É importante ressaltar que, apesar de todo o esforço realizado nesta pesquisa, o Censo Agropecuário em seu formato atual não nos permite ter uma dimensão real do nível de transição agroecológica da agricultura brasileira. “Os dados fornecidos são bastante grosseiros, obscurecendo a variabilidade de escala dos sistemas de manejo relacionados às principais funções ecológicas”, explica Dana. Também faltam no Censo bons indicadores para três dos 10 Elementos da Agroecologia da FAO: cultura e tradição alimentar; cocriação e compartilhamento de conhecimento; e economia circular e solidária.

Segundo Dana, “Isso é particularmente notável, pois esses três elementos estão relacionados às dimensões sociais, culturais e econômicas da Agroecologia, que nossa análise sugere que podem ser importantes impulsionadores das transições agroecológicas”. Não à toa muitas pessoas que praticam, pesquisam e promovem a Agroecologia a definem como ciência, prática e movimento social.

Para compreender a real dimensão da Agroecologia no território nacional, é preciso avaliar mais do que apenas produtividade e renda, mas também as funções socioecológicas que os agroecossistemas desempenham. Esta é uma tarefa bastante complexa, mas importante, pois poderia nos indicar caminhos e gargalos para a transição agroecológica.

A importância da construção de indicadores em Agroecologia

Desde 2020, o Cepagro, junto a outras 7 organizações latinoamericanas, vem desenvolvendo um projeto em rede que visa justamente identificar e coletar indicadores agroecológicos, nos âmbitos social, econômico e

ambiental, que possam contribuir com a pesquisa em Agroecologia, bem como servir de subsídio para a elaboração de projetos, programas e políticas públicas. O projeto, intitulado “Agroecologia na América Latina: construindo caminhos”, tem o formato de uma pesquisa-ação e conta com a participação de famílias agricultoras do Brasil, Paraguai, Equador, El Salvador e México.

Dana James é uma das pesquisadoras ligadas a Universidade da Colúmbia Britânica e que tem contribuído com o projeto. Sobre a abordagem quantitativa e qualitativa adotada na pesquisa-ação, Dana explica: “enquanto as métricas quantitativas podem facilitar comparações úteis e ajudar na comunicação com os formuladores de políticas, também podem ignorar fatores específicos do contexto, separados das realidades locais”. Já indicadores qualitativos, “embora forneçam dados ricos, detalhados e contextuais, podem ser difíceis de comparar e comunicar em escalas mais amplas”.

O desafio é, a partir de uma compreensão mais holística da Agroecologia, poder compartilhar informações que sejam contextualizadas e que, ao mesmo tempo, possam ser comparadas com sistemas agrícolas convencionais e de diferentes escalas. A partir disso, fornecer embasamento para que municípios e países possam transformar seus sistemas alimentares e agrícolas rumo a uma perspectiva agroecológica, que respeite todas as formas de vida e promova justiça social e soberania alimentar.

Citações

James, D. (2022). The transformative potential of agroecology: Integrating policies, practices, power, and philosophies for living well (T). University of British Columbia. DOI: https://dx.doi.org/10.14288/1.0406668 

 

James, D., Blesh, J., Levers, C., Ramankutty, N., Bicksler, A. J., Mottet, A., & Wittman, H. (2023). The state of agroecology in Brazil: An indicator-based approach to identifying municipal “bright spots”. Elementa: Science of the Anthropocene, 11(1). DOI: https://doi.org/10.1525/elementa.2023.00011