Enquanto em nome de uma suposta garantia da segurança alimentar, o atual governo insiste na liberação desenfreada de agrotóxicos – a ponto de sua produção justificar até mesmo a mineração em terras indígenas -, agricultores agroecologistas mostram qual caminho seguir para alcançar a soberania alimentar: cultivar alimentos em harmonia com a natureza, através de sistemas biodiversos e reduzir a dependência de insumos externos. Suas propriedades altamente diversificadas são verdadeiros laboratórios a céu aberto e podem nos indicar caminhos do porquê e como a Agroecologia oferece saídas para as crises atuais.
Foi este o entendimento que motivou oito organizações que promovem a Agroecologia na América Latina a iniciarem um projeto com foco na identificação de indicadores agroecológicos. Das oito, três são brasileiras – Cepagro, CETAP e Movimento Mecenas da Vida – e entre os dias 14 e 16 de março estiveram reunidas na Bahia para discutir o tema com a PhD e professora do Centro de Sistemas Alimentares Sustentáveis da University of British Columbia, Hannah Wittman, que é parceira no projeto Agroecologia na América Latina: construindo caminhos, apoiado pela Fundação Inter-Americana (IAF).
O encontro aconteceu no distrito de Serra Grande, Sul da Bahia, região de atuação do Movimento Mecenas da Vida (MMV) e berço da Rede de Agroecologia Povos da Mata, que também é parceira no projeto. Na ocasião, as organizações puderam conhecer algumas das famílias que vem fornecendo informações sobre o manejo de suas propriedades e assim contribuindo com o projeto de pesquisa-ação. Da mesma forma, estas famílias puderam conhecer quem são as pessoas envolvidas no projeto e ter a certeza de que possuem o mesmo propósito: demonstrar o potencial da Agroecologia.
Quatro destas famílias constroem o Assentamento Dois Riachões, no município de Ibirapitanga. Em conversa com os assentados, a professora Hannah contou um pouco da sua trajetória e como começou a se interessar por indicadores da Agroecologia:
Filha de agricultores, Hannah saiu de casa ainda jovem para estudar. Sua trajetória acadêmica a levou a pesquisar a Agroecologia, chegando a trabalhar com o MST no Mato Grosso e posteriormente assumir a direção da UBC Farm, Fazenda Experimental do Centro de Sistemas Alimentares Sustentáveis da University of British Columbia (UBC), do Canadá.
Pesquisando, Hannah e alguns de seus estudantes de pós-graduação constataram que os censos agrícolas oficiais eram muito limitados em relação à Agroecologia, não incluíam índices de sustentabilidade ambiental ou social, por exemplo. Por outro lado, observaram que na fazenda da UBC havia muitas informações disponíveis – sobre cultivos, colheitas, comercialização, insumos, etc. – mas que estavam dispersas, sob a gerência de diferentes pesquisadores/as.
Era preciso centralizar as informações para fazer análises mais sistemáticas, mas como?
A partir deste questionamento, um de seus orientandos, Zia Mehrabi, começou a mapear aplicativos de gestão agrícola existentes e, também neste campo, as ferramentas encontradas eram em sua maioria voltadas para a agricultura convencional, de grande escala e eram aplicativos pagos. Assim surge a ideia do LiteFarm, um software de código livre, gratuito e com um olhar para a agricultura diversificada, que posteriormente foi agregado ao projeto. É por meio dele que alguns indicadores serão coletados. Além disso, a plataforma se propõe a ajudar os agricultores/as na gestão de suas unidades agrícolas e já conta com mais de 2 mil pessoas cadastradas em cerca de 80 países.
“A ferramenta vai ser muito útil porque os relatórios que são gerados podem nos ajudar na tomada de decisões sobre a produção e isso é muito bacana pra ajudar a gente a avançar tanto nos processos de certificação como de comercialização”, comenta Luciano Ferreira da Silva, uma das lideranças do Assentamento Dois Riachões.
Saberes dos agricultores/as: a base do conhecimento agroecológico
Para Isadora Escosteguy, Mestra em Agroecossistemas e técnica de campo do Cepagro, o projeto de pesquisa-ação representa uma oportunidade porque “parte do ponto de vista do campo junto às famílias agricultoras, que têm autonomia sobre as informações e práticas produzidas por elas mesmas”. E um diferencial do projeto é a soberania e transparência na coleta destas informações. “O CEPAGRO é um parceiro que apoia e dinamiza o processo, mas o objetivo é que elas mesmas se empoderem e potencializem os seus registros para chegarem a reflexões e melhores decisões na gestão de suas unidades agrícolas, tanto nos aspectos da produção, comercialização e sociais, quanto do manejo dos agroecossistemas agroecológicos”, comenta Isadora.
O diálogo de saberes é fundamental na construção do conhecimento agroecológico, como explica Hannah Wittman: “a pesquisa agroecológica considera a sustentabilidade agrícola de forma holística, incluindo as dimensões ecológica, econômica, social, cultural e política. Como tal, requer colaboração interdisciplinar para identificar uma ampla diversidade de abordagens específicas de contexto para alcançar a soberania e a segurança alimentar, em vez de uma única solução”.
Durante o encontro, representantes do Cepagro, Cetap e MMV, a Dra. Hannah e o representante do LiteFarm, David Trapp, debateram sobre o andamento do projeto aprovado em 2020, compartilhando os desafios que se apresentam até o momento e pensando conjuntamente estratégias para contorná-los. Como lembrou Hannah, este “é um projeto piloto, estamos construindo e aprendendo sobre a metodologia juntos”.
Rede Latino Americana
Tiago Tombini, um dos fundadores do Movimento Mecenas da Vida, acredita que “com esses dados em mãos a gente vai conseguir comprovar de uma forma mais sistemática e científica que a Agroecologia gera impactos socioeconômicos positivos nas comunidades tradicionais e também impactos ambientais na linha de conservação dos remanescentes florestais, dos recursos hídricos das propriedades, tendo suas matas ciliares protegidas. Isso é algo muito importante para o nosso trabalho e também para o trabalho que as outras instituições do projeto vem realizando”.
Fundado em 2008, o MMV tem o projeto Turismo CO2 Legal como o grande guarda-chuva da organização – por meio do qual o recurso de compensação do carbono emitido financia parte do trabalho de agricultores da Rede Povos da Mata. A Rede conta hoje com cerca de 900 agricultores certificados. Agricultores como o Gabriel Goés, para quem os indicadores representam um desafio de longa data dentro da Agroecologia.
“A Agroecologia é muito complexa, não é tão simples quanto a agricultura convencional que é muito reducionista, e talvez esse tenha sido um dos motivos pelo qual a pesquisa em Agroecologia não tenha avançado tanto desde o seu surgimento. Ela carece de mais estudos, mais pesquisa. As informações estão aí, as famílias estão desenvolvendo Agroecologia, muito conhecimento agroecológico é produzido e acaba se perdendo, não tem registro. Então é essencial para esse entendimento como um todo, para poder criar políticas públicas e direcioná-las”, comenta Gabriel, que também é técnico de campo do MMV. E acrescenta: “Eu vejo a Agroecologia dentro daquele tripé: movimento, ciência e prática e dentro desse aspecto da ciência, o estudo dos indicadores é muito importante”.
“Estabelecer estas relações de intercâmbios, não só com as experiências brasileiras mas também poder dialogar com frequência com as organizações parceiras dos outros países, tem enriquecido nossas práticas enquanto organizações e fortalecido a troca de saberes e aprendizados em diferentes níveis, desde as questões da produção, como também o apoio e fortalecimento de redes locais, a exemplo da rede do México, além de proposição de políticas públicas que fortaleçam a Agroecologia nos territórios, tanto nacional como internacional”. E complementa: “Perceber e aprender com a diversidade de práticas, culturas e ‘jeitos de fazer’ por si só são resultados positivos do projeto, e os dados sistematizados trarão ainda mais elementos para a reflexão, avaliação e ação. Frutos que todos iremos colher”, afirma Erika.